Friday, September 24, 2010

Escola de provadores de vinho

A nossa equipa de reportagem…ou melhor…a nossa equipa de coscuvilheiros anda por aí. Agora que se aproxima o início das aulas, resolvemos pôr pés ao caminho e ir visitar escolas com particularidades bem curiosas.

A Escola de Provadores de Vinho situa-se algures no Centro de Portugal. Disseram que não queriam que se soubesse a localização exacta porque se trata de uma entidade particular, com um grupo muito seleccionado de alunos e docentes. Resumindo, não querem que as pessoas de fora metam o nariz no que se passa ali dentro. Mas nós vamos insistir, oh se vamos!

Após alguma relutância em nos receber, a directora deste “estabelecimento de ensino” Madalena Ortigosa combinou uma visita guiada ao edifício e convidou-nos amavelmente para assistirmos a uma das primeiras aulas ali leccionadas pelo professor Bruno Pinheiro.

Assim ficou combinado. Assistiríamos a essa aula e falaríamos com o professor e alguns alunos para sabermos quais os motivos pelos quais escolheram este curso e os seus objectivos para a vida futura. E longe estávamos nós de pensar em assistir a uma aula tão hilariante.

Inaugurada a 17 de Setembro de 2005, este estabelecimento lecciona cursos com equivalência ao décimo segundo ano. O curso único que se lecciona é o de provador de vinho, de uma forma pomposa, chama-lhes degustadores de néctares espirituosos. É que não se trata apenas de vinho, todo o tipo de bebidas são experimentadas por jovens maiores de dezoito anos. Claro que a maior parte das bebidas a degustar são vinhos vindos de diferentes partes do Mundo.

Com uma ponta de sarcasmo, alguém à entrada da escola teceu o comentário malicioso de que ali se estudava para se ser um alcoólico compulsivo. Será?

O dia da visita chegou finalmente. Madalena Ortigosa veio receber-nos com um sorriso rasgado no rosto. Vestia um fato composto por umas calças e um casaco castanho e usava também uma blusa cor de vinho. Mesmo a calhar por causa das nódoas. Isto se quisermos continuar com aquilo a que em bom Português se classifica de “bocas foleiras”. Se ela ouvisse, punha-nos na rua certamente.

Logo à entrada da escola, chamou-nos a atenção uma enorme escultura em pedra que representava um homem com as pernas arqueadas erguendo na mão direita uma garrafa de vinho e na mão esquerda um cacho de uvas. Explicou-nos a nossa anfitriã, numa voz muito arrastada que aquela era uma representação do deus Baco. Intrigadas, algumas pessoas continuaram com os comentários despropositados (ou muito a propósito) e questionaram se no tempo de Baco já haveria garrafas.

Entrámos num espaço amplo. Era um átrio onde havia vários quadros antigos com a temática das vindimas. Havia também fotos da inauguração da escola em que os brindes de grupo e as garrafas de vinho com os rótulos virados para a objectiva se faziam notar.

Passámos por um corredor pouco iluminado e um cheiro a vinho inundou-nos as narinas. Parecia que estávamos a entrar numas caves ou coisa parecida. Parecia cheirar mesmo a mosto. Ao percorrermos o espaço, íamos notando que os nossos sapatos se colavam ao chão. Só depois, numa zona onde uma janela indiscreta nos deixava ver alguma coisa, notámos que ali se entornava vinho no chão. Ao pé de uma porta havia mesmo estilhaços de uma garrafa e de dois copos. Um tabuleiro castanho ficara teimosamente em pé atrás de outra porta que estava encostada para trás. Foi por essa porta que entrámos e demos de caras com o professor Bruno Pinheiro a misturar um vinho muito escuro com cerveja, por acaso sem álcool.

- O que está a fazer?- perguntou um dos nossos elementos.
- Estou a ver se consigo enganar os alunos- respondeu prontamente o “docente”.
- Estes alunos são novos, nem sabem o que os espera por aqui. Primeira aula, primeira borracheira.

Esperámos até que três dedicados e ansiosos alunos ocuparam o seu lugar numa sala pequena. Traziam apenas pequenos blocos de apontamentos e uma caneta. Para quê trazer mais alguma coisa para aquelas aulas?

Sofia Soares estava ansiosa para que a aula começasse. Perguntámos à jovem de vinte anos o que a levou a optar por este curso. Ela não soube responder.

Sentámo-nos ao fundo da sala e ficámos a observar Bruno Pinheiro alinhar seis copos em cima de uma pequena mesa de madeira. Depois alinhou várias garrafas. Eram imensas. Aquilo era para beber tudo? Não, que ideia! Quem pensar o contrário está a cometer um grave pecado mortal. O da soberba?

Bruno Pinheiro enche o copo até abarrotar com o conteúdo de uma garrafa que parecia ser de vinho do Porto mas que não tinha rótulo e ordenou:
- Ruben, tens aqui este copo de vinho. Quero que o bebas todo de um só trago e digas depois a que sabe.
- Mas oh professor, não é só para molhar a boca e cuspir como fazem os que eu vi na televisão? – perguntou incrédulo o aluno.
- NÃO! Aqui o copo bebe-se até ao fim e nada de deitar vinho para o lixo. A Lena detesta que estraguem vinho!

Ruben Falperra, o dedicado aluno bebeu o líquido acastanhado existente no copo de um só trago, tal como o seu mestre mandara fazer.
- Então!
- Há quanto tempo guardam aqui esta garrafa?- perguntou Ruben- já tem montes de borras.
- Que ideia!- respondeu o professor- este vinho é de boa qualidade.
- Não duvido- disse o aluno- mas esta garrafa já está por aqui há mais de cinquenta anos.

Um professor normal, ficaria orgulhoso por o aluno mostrar os seus conhecimentos na frente de estranhos mas Bruno Pinheiro ficou um pouco agastado com a observação do seu discípulo. Em silêncio, pegou noutra garrafa que parecia ser de um vinho esverdeado e ordenou:
- Sofia, faça favor de beber este vinho até ao fim!

Sofia engoliu com dificuldade o precioso líquido do copo. Terminou com uma careta horrível.
- BAAAH!
- O que foi?- perguntou Bruno Pinheiro com ar agastado.
- É horrível!- disse a aluna quando se restabeleceu do sacrifício.
- Este vinho? Não diga disparates!
- Mas é. Quer provar ou já provou?
Para grande espanto de todos, Bruno Pinheiro pegou na garrafa e bebeu o resto num só trago. Em nenhuma ocasião do processo lhe faltou o fôlego. Depois sentou-se e abriu com dificuldade uma garrafa de vidro castanho.

Houve um silêncio quase sepulcral na sala. Sérgio Vicente olhava fixamente para o amontoado de garrafas em cima da mesa. Qual delas iria provar?
- Sérgio, tenho aqui um vinhinho que chegou lá dos lados de…não me lembro e também não interessa.- Encheu o terceiro copo e poisou a garrafa muito afastada do local de onde a tinha retirado.

Sérgio olhou para o copo antes de beber. Depois lá cumpriu o ritual de beber tudo de um só trago e contar ao docente o que sentiu.
- Isto é vinho?
- Disseram-me que sim…- confirmou hesitante Bruno Pinheiro.
Sérgio calou-se. O seu silêncio era o de alguém que está a meditar sobre algo.

- A Clara?- perguntou o professor.
- Disse que ia chegar atrasada porque tinha de ir tratar de documentos que faltam para a matrícula- justificou Ruben.
- O Diogo?- perguntou Bruno novamente.
- Apanhou a bebedeira ontem e hoje ficou sem condições de vir à aula.- justificou novamente Rubem.
Bruno ficou furioso.
- Pois, e depois os néctares servidos aqui sabem a madeira, ao vinagre, a choco…claro! Estragam o paladar a beber cerveja…
- Mas oh professor, isso nessa garrafa aí ao canto por acaso também não é cerveja?- perguntou sarcasticamente a Sofia.
- É mas esta cerveja não tem nada a ver com a cerveja das tascas por aí. É uma cerveja requintada vinda da Boémia.
- Pois…-insinuou a Sofia, arrependendo-se de repente da “boca foleira” que ia mandar.- Ora deixe cá provar essa maravilha!

Sofia levou a garrafa da cerveja à boca como se fosse beber um néctar divino. Fez uma careta mas continuou heroicamente a beber o que quer que fosse aquilo. Quando terminou, os seus olhos mostravam um brilho estranho. Parecia fortemente embriagada mas assim tão de repente? A aluna sentou-se com alguma indecisão na sua cadeira.

Bruno Pinheiro preparava-se para apanhar uma garrafa de vinho cujas letras do rótulo quase não eram decifráveis quando Madalena Ortigosa entrou na sala arrastando muito as pernas. Na mão trazia uma garrafa de forma triangular que parecia estar a beber avidamente.
- Isto é maravilhoso! Um verdadeiro néctar dos deuses.- proferia ela já com a voz bastante alterada pelos efeitos do álcool. Bruno quis tirar-lhe a garrafa para provar mas ela segurou-a como quem segura um tesouro valioso.
- Chega Lena! Deixa os alunos também provarem esse vinho ou lá o que seja essa mistela!
- Mistela?!! Volta a chamar mistela ao meu licor especial e voa uma garrafa dessas porcarias que aí estás a dar aos teus alunos. Os meus só bebem licores finos. Nada de vinhos recolhidos das tascas da aldeia.

Proferindo estas palavras, Lena pega numa vulgar garrafa de vinho daquelas que não faltam às refeições dos portugueses e arremessou-a na direcção de Bruno. Como a directora estava mais bêbada que o próprio Baco, a garrafa saiu directamente pela janela aberta. Ouvimo-la estilhaçar-se lá em baixo, num som algo remoto.

Esquecido o incidente, a aula decorreu e os alunos já estavam visivelmente alcoolizados. Bateram à porta. Era uma equipa de reportagem de um canal televisivo online. Iriam eles filmar o resto daquela aula? Que degredo!

O repórter queria um ou dois alunos para fazer uma reportagem sobre a prova dos vinhos. Sérgio Vicente foi o aluno escolhido para fazer a dita peça jornalística. Com os olhos brilhante de embriaguez, o aluno olhava fixamente a fila de garrafas colocadas em cima da mesa onde haviam estado as trazidas por Bruno Pinheiro. Desta vez as garrafas tinham bom aspecto e estavam devidamente seladas. Foi aberta uma e um copo foi colocado com um pouco de vinho na frente de Sérgio.

O aluno examinou o copo e logo constatou com indignação que este não estava cheio. Logo protestou:
- Oh chefe, a casa faliu ou quê? O copo tem de ser a deitar por fora.

O repórter alegou que o copo do provador de vinho teria de ter apenas o suficiente para ele o poder degustar e depois deitar fora. Bruno interrompeu:
- Aqui não se deita nada fora! O vinho tem de ser provado e degustado como deve ser. Ora essa! Deitar o vinho fora? Mas somos ricos?

O repórter fez sinal para que ele se calasse e continuou a sua reportagem com a abertura de outra garrafa que despejou em pequena qualidade noutro copo limpo. Sérgio protestou novamente:
- Já disse que este vinho soube a pouco!

Já a ponto de perder a paciência com o professor, a directora e os alunos que estavam piores que os seguidores de Dionísio, o repórter fez mais uma tentativa com um vinho branco embalado num pacote idêntico aos do leite.
- Isto sabe a prata de chocolate. Estou a ser sincero! Isto tem ar de ter estado guardado algures num sótão ou coisa parecida.

O repórter sorriu com a prestação do aluno escolhido, embora não fosse isso que ele deveria ter dito. Quanto ao facto de mal se perceber o que ele dizia, nada se podia fazer a menos que se esperasse que a bebedeira passasse.

O nosso trabalho estava terminado. Era hora de sair. Passámos pelo mesmo corredor estreito e pegajoso. Alguém quase caiu ao colocar um pé em cima de uma garrafa que rolou. O nosso colega caiu e ficou imundo. Quase se colou ao chão de tão viscoso que estava. Ao levantar-se olhou para dentro de uma sala pequena. Debruçada em cima da mesa, Madalena Ortigosa permanecia ainda segurando com estranha firmeza para uma pessoa no seu estado a garrafa que insistia ser só dela. Aquela pomada devia ser realmente boa!

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