Posso ter sonhado com muita coisa mas lembro-me,
essencialmente, deste curioso episódio.
A cena repetia-se noite após noite. A altas horas, um canto
agradável enchia a madrugada. Era uma voz límpida, uma voz que preenchia a alma
com o seu canto, fazendo-nos sentir vivos, aconchegados e em paz. Estava um
frio de rachar, a noite não tinha lua mas, assim que as primeiras notas soavam,
logo saíamos à rua para ouvir. O canto podia vir dali, de acolá, de lado
nenhum. Não sabíamos de onde vinha. Sabíamos que a noite não era a mesma sem
essas melodias.
Uma noite, estava eu de fim-de-semana em casa, ouviu-se essa
voz. Já era tarde mas logo saímos à rua. Nunca tinha ouvido coisa igual. Perguntei
à minha mãe o que era aquilo. Ela disse que não sabia mas que aqueles cânticos
já eram ouvidos pelo menos há uma semana.
Escutámos melhor. Agora pareciam vir do lado oposto ao de
onde inicialmente tinham começado. A certa altura, pareceu-me ouvir duas vozes
a entoar aqueles cânticos harmoniosos que pareciam provir de anjos. Como estava
enganada!
O canto cessou e, pouco tempo depois, saltou do muro um gato
siamês igual ao que tinha desaparecido de casa da minha vizinha há tempos. O gato
estava muito magro e parecia doente. O pêlo estava-lhe a cair quando o tentei
agarrar e trazer para dentro. A lareira estava acesa e o gato sentou-se em cima
de um banco.
Sentindo-se quente e confortável, logo começou a querer
cantar dentro de casa. Estava desfeito o mistério dos cânticos. Era aquele gato
que estava a cantar. Aquele gato que fora abandonado por ter uma doença. Faltou
saber quem o acompanhava a certa altura na sua cantoria.
Um gato atroando os ares com a sua música harmoniosa,
imagine-se. Que mais surpresas me reservam os sonhos. A fasquia está bastante
alta.