Estamos em 2182. O enorme cão negro percorre uma extensa
área sem uma única ponta de vegetação.
Já vagueia sem destino há horas e a paisagem quase lunar não muda.
A grande cidade já há
muito que ficou para trás. Muitos dias o
Sol se pôs e muitos dias a escuridão da noite tomou conta do Céu e nem um ser
vivo o velho cão negro avistou.
Junto a um enorme rochedo, o velho cão negro esticou as suas enormes e robustas patas. O seu corpo
estava fustigado por horas e horas de exaustiva caminhada.
Começava a escassear o alimento. Há uns dias havia
encontrado uns ossos bem macios que lhe restituíram forças mas agora era só ele
no Mundo.
O silêncio oprimia. Só o vento se manifestava ao bater nas
rochas quase lunares daquela paisagem desoladora em que a Terra se transformou.
O último cão resolveu ensaiar um uivo sentido para a noite
vazia. Já não se lembrava da última vez em que a sua garganta emitiu um som.
Não se viam humanos por ali e muito menos animais. Nem as ervas purgantes se
encontravam ali.
Passou algum tempo. Mais um dia que nascia sempre igual. O
velho cão negro e último exemplar canino
existente na Terra acordou de um sono reparador. Mais um dia de infrutífera
caminhada.
Agora os humanos concentravam-se em enormes aglomerados residenciais.
Cidades enormes erguiam-se em determinados pontos do planeta. Fora delas era a
desolação. Quantos dias e quantas noites teria de andar para encontrar uma
cidade?
Não havia florestas. A pouca vegetação que havia era
rasteira e escassa. O último cão já conheceu a Terra assim. Aqui e ali
espreitava para as casas nas grandes cidades. Furtivamente reconhecia a imagem
de outro ser como ele em velhos livros que já estavam amarelecidos pelo tempo
mas que os humanos guardavam carinhosamente, apesar de terem máquinas para tudo
agora e lerem de outra forma.
Nesses velhos livros ele via seres semelhantes a ele serem
acarinhados pelos humanos. Agora os tempos mudaram. Os humanos substituíram
seres vivos por robots a que chamam animais de estimação. Muitos deles guardam ainda formas caninas.
O velho cão negro não entende a linguagem dos humanos. Teme
aproximar-se demasiado das casas. Só mesmo pela calada da noite consegue
espreitar às janelas, como se fosse um clandestino, um marginal.
Não sabe de onde veio, o que aconteceu aos restantes
exemplares da sua espécie outrora tão apreciada para companhia pelos humanos.
Antes de adotarem aqueles bichinhos
tecnológicos.
Nos velhos livros o último cão vê também imagens de um mundo
que não compreende. Vê pessoas em volta de uma plataforma onde estão algumas
coisas em cima. Hoje isso não acontece. Ouviu dizer que aquilo era comida mas
os seres humanos hoje alimentam-se com
uns discos redondos. Ouviu dizer que por vezes essas refeições eram à
base de carne de animais que continham ossos que os humanos deitavam no lixo.
Agora muito raramente se encontram outros animais para caçar
e para comer. Existem de onde a onde uns pequenos coelhos que possuem ossos
macios e suculentos mas é preciso andar muito para os voltar a encontrar.
Enquanto refletia, o velho cão negro chegou a um riacho. A
água era escassa mas limpa. O velho cão mergulhou e imediatamente se sentiu
revigorado. Bebeu avidamente e esticou as suas longas patas negras ao Sol.
Adormeceu num instante mas foi acordado por um bando de estranhos seres que não eram
aves mas tinham umas asas que pareciam pesadas. O velho cão levantou-se de um
pulo. Tinha de caçar um daqueles seres para se alimentar. Eram muitos, aqueles
animais. Se subtraísse um nem se dava por falta.
Roendo a última cartilagem do seu farto repasto, saciado de
sede e de fome, o último cão à face da Terra continuou a sua jornada.
Trotando a passo ligeiro, o velho cão negro nem queria
acreditar na sua sorte. Julgou ver um extenso pedaço de verde lá ao longe.
Aproximou-se mais. Algo lhe chamou a atenção.
Ali, isolada de tudo, encontrava-se uma velha cabana de
madeira. O último cão resolveu prostrar-se junto á rudimentar porta de madeira.
Cheirava a fumo e a algo mais.
A porta abriu-se. Saiu de dentro do aposento um humano com
cabelo e barba grande. Usava uns aparelhos para ver à distância mas o que o
impressionou estava bem ali junto aos seus pés. O último cão existente na Terra
estava á sua porta.
Há anos que o velho cientista procurava um exemplar canino.
Ouviu dizer que um fora avistado há cinco anos atrás. Era negro e enorme.
Provavelmente um descendente de Labrador.
O velho homem agachou-se e fez uma pequena festa na enorme cabeça negra do
animal. O último cão sentiu-se estremecer. A sensação era maravilhosa. Teriam
os seus antepassados que conviviam com
os humanos Sentido tão prazerosas carícias?
O homem voltou para dentro de casa. Quando regressou, trazia
uma generosa quantidade de ossos e uma tigela com água. O velho cão ladrou de
alegria. Agitando a sua cauda negra, saltava
com quanta força tinha.
Homem e cão confundiram-se num abraço sentido e viveram dali
em diante na velha cabana de madeira longe da civilização e da aridez da
paisagem.