Saturday, April 23, 2011

“Os Dois Irmãos” (impressões pessoais)



Pensava à partida que a leitura desta obra da autoria do cabo -verdiano Germano Almeida iria ser monótona e enfadonha. Sendo um homem formado em Direito, julguei que o autor utilizaria uma linguagem muito complexa e formal mas enganei-me.

A leitura deste livro acabou por me levar numa viagem até à sociedade rural de Cabo Verde ainda nos primeiros anos de independência. A história verídica de um fratricídio levou o escritor a elaborar este romance com uma riqueza de conteúdos notável sobre as normas do meio rural que não estão escritas em nenhum tratado mas que são mais fortes do que qualquer lei instituída e são mais facilmente assimiladas por todos os membros.

Ao longo da leitura deste livro não deixei de tirar apontamentos de assuntos que gostaria de abordar aquando das minhas apreciações pessoais.

É incrível como nos anos setenta, ainda se valorizava a honra do homem e por ela ainda se incentivavam ou praticamente obrigavam a cometer o chamado crime de lavagem de honra como foi este. Aliás, mesmo aqui em Portugal, nos meios rurais, ainda hoje muitas pequenas comunidades se regem por normas completamente desajeitadas como esta. Numa sociedade com esses valores machistas e retrógrados, a mulher é pertença do seu marido ou do seu pai, não tem vida própria e jamais lhe é permitido trocar de parceiro, mesmo que este esteja longe, como é o caso do protagonista desta história.

Se a mulher é apanhada com outro, cabe ao marido fazer o que quiser com o amante da esposa e mesmo com esta, visto que ela é propriedade sua. Incrivelmente, estas normas lamentáveis tardam em desaparecer dos nossos meios rurais. Estão tão enraizadas que serão precisos muitos mais séculos até para as refutar completamente e para que finalmente as mulheres usufruam dos mesmos direitos que os homens.

Embrenhemos então em André- um inocente rapaz que saiu da sua pequena aldeia em Cabo Verde e emigrou para Lisboa onde praticamente começou uma vida nova. André era casado. Foi obrigado a casar porque o pai da sua mulher persuadiu o pai de André a obrigá-lo a casar com a sua filha porque se haviam envolvido sexualmente. Desonrando a rapariga, havia que casar com ela. Ora então pois. Nem outra coisa seria de esperar.

André conheceu uma outra companheira em Lisboa e estava a esquecer a mulher a pouco e pouco quando chegou uma carta do pai a informá-lo que apanhou o seu irmão no palheiro envolvido com a sua mulher. Na mesma carta, o pai de André pedia ao filho que viesse a Cabo Verde resolver o problema. André deslocou-se à sua terra natal com a intenção apenas e só de se divorciar e deixar a mulher e o irmão em paz mas a pressão dos seus familiares e amigos foi mais forte. Praticamente o obrigaram a assassinar barbaramente o seu irmão- coisa que ele não tinha ideias de fazer.

Ao contrário do que acontece com qualquer assassino, eu não senti raiva de André por ter cometido o crime. No meu entender, André é tão vítima como o seu irmão que morreu assassinado por ele. Chega até a dar pena. Analisando a personagem, André é até um pouco inocente, facilmente influenciável e bastante apegado à sua família e às suas raízes.

O episódio delicioso de André a relatar em tribunal as incidências da sua chegada a Cabo Verde é simplesmente fantástico. Parecia a minha mãe ou eu a relatar alguma coisa. Só faltou mencionar quantas vezes foi à casa de banho nesse dia e de que cor eram as toalhas do quarto da pensão onde dormiu.

Chegado á sua aldeia que tanto sonhou rever, André ficou extremamente desiludido porque algo tinha mudado. O seu pai recebeu-o com ar hostil e sua mãe era obrigada a afastar-se do filho por pressentir de antemão que iria ocorrer algo de ruim.

O pai de André e João era uma pessoa bastante autoritária, hostil, retrógrada e machista. Estava sempre preocupado com as aparências e jamais poderia compreender qualquer manifestação de amor ou carinho genuíno de outra pessoa por alguém. Desde sempre que o pai de André demonstrou o seu mal-estar pela afectividade que ele nutria pela mãe e pelo irmão. Por tudo isto, André- um homem de sentimentos nobres- sempre foi desprezado pelo pai que até desconfiava que ele não fosse cem por cento macho.

Para além da hostilidade que André notou em casa, quando saiu à rua também reparou no comportamento estranho das pessoas. Tendo ele passado três anos em Lisboa sem visitar a sua terra, o natural era as pessoas saírem de suas casas e correrem para o saudar. Acontecia exactamente o contrário. Sempre que alguém se cruzava com André, passava para a berma da estrada contrária e não lhe falava. André não compreendia por que tinha de ser assim. Realmente!

O pai evitava André e incitou-o a fazer o que quisesse ao irmão. A vergonha do pai era tanta que, para evitar que as pessoas de fora vissem o filho, corria a fechar todas as portas e janelas sempre que André estava em casa. É por essas e outras que eu compreendo André. Uma situação destas não é nada fácil. Ele que esperava ser recebido de braços abertos depois de tanto tempo fora e é tratado como um bicho peçonhento ou algo assim pelos seus familiares e amigos.

Eu, que me estava a preocupar de antemão antes de ler este livro com o excesso de linguagem complexa e cuidada por parte de um homem das leis, assinalo com curiosidade o facto de, precisamente neste livro, se fazer uma alusão ao excesso de complexidade e cuidado na linguagem que os advogados e juízes empregam e que por vezes leva o povo a não compreender as coisas. O recurso excessivo ao Latim também é criticado. Isto vem a propósito de uma pergunta que alguém que estava a ser interrogado não percebeu. Curioso também é que se recorre neste capítulo que visava criticar os excessos dos homens das leis ao Latim e á linguagem complexa.

Outra situação curiosa tem a ver com o facto de, também os homens das leis, estarem preocupados com o que o povo vai dizer se eles despem as becas e as togas devido ao calor. O povo da aldeia não ia tomar como válido um julgamento efectuado por juízes e advogados sem becas e togas vestidas. Eles que estão a julgar, relembre-se, um caso em que o indivíduo foi pressionado por todo um contexto de normas sociais a cometer um crime.

Também destaco o capítulo em que se descreve o almoço dos homens das leis. Para quem é apreciador de cabeças de animais, este é uma boa fonte para se aprender a apreciar a arte de comer cabeças de cabrito e afins.

Voltando ao enquadramento do crime, André sentia-se cada vez mais só e foi com grande tristeza e revolta que viu que o seu tio Domenico também se afastou dele como se ele fosse um demónio ou algo assim. André sempre tivera no seu tio a referência que talvez não tinha do seu pai. Respeitava imenso este familiar e o desprezo deste causou-lhe uma dor insuportável. Para esta sociedade, a mulher era a coisa mais sagrada que um homem poderia ter. Se acaso alguém se apoderasse indevidamente dela e o marido nada fizesse, era como se ele não tivesse honra ou vergonha. Era natural que toda a gente se afastasse dele. Repare-se que aqui as vontades e sentimentos da mulher não são tidos nem achados.

Desprezado e abandonado por todos os que amava, mal recebido pelos seus amigos e vizinhos, foi durante uma festa de boas-vindas de um seu amigo que também regressou de Lisboa que André se lembrou de confrontar o seu irmão João e daí resultou a sua morte. Assim que a notícia correu, André foi aclamado e o seu pai e restantes familiares tomaram-no nos braços.

Pela justiça, André foi condenado por fratricídio mas quem devia pagar a pena deveria ter sido toda uma comunidade que o influenciou fortemente a pôr termo á vida do irmão que tanto amava.

Segue-se então a leitura de mais uma obra de uma escritora americana que promete ser interessante e me promete prender e viciar da primeira à última página.

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