Sunday, April 24, 2011

Infância no campo

Grande parte das minhas colegas de trabalho não vive propriamente na cidade. Quase todas são provenientes das zonas rurais.

Uma colega minha estava no turno de fecho e eu, para reinar com ela, disse-lhe que ela já levava meio-dia de trabalho no campo e que já tinha as batatas todas semeadas. É que ela gabava-se de se levantar no Verão às cinco e meia da manhã e cuidar das lides do campo.

Ela olhou para mim e riu-se dizendo que as batatas daqui a mais estavam em ordem de arrancar. Eu fiquei estupefacta com a minha nabice em questões de agricultura. Eu que até venho da aldeia e fui sempre criada no campo e nos pinhais.

Eu salientei esse aspecto e disse que, quando ia para as terras com a minha mãe e com as outras pessoas que trabalhavam para ela, era só para fazer travessuras e para arreliar o espírito a quem vinha farto de trabalhar.

Ela afastou-se e eu comecei a recordar fragmentos dessa infância passada no campo, com o Sol a queimar a pele e com a erva verde e fofa a beijar-me os pés.

Eu lembro-me de algumas das nossas travessuras infantis quando íamos para o campo. A minha mãe tinha uma terra que alugou durante muitos anos que ficava bastante longe de nossa casa. Agora, se lá passar a pé, tenho uma vaga ideia de onde isso fica mas não sei o sítio exacto. A paisagem entretanto foi modificada com o crescimento do lugar até ali. A maioria das casas que ali se encontram foram construídas por emigrantes que ganharam a vida nos Estados Unidos.

A minha mãe chamava àquela terra Boiça. Na maioria das vezes, ficávamos com a nossa avó em casa para não irmos chatear quem estava a trabalhar mas, principalmente quando fazia bom tempo, e quando as pessoas que vinham ajudar os meus pais traziam outras crianças, nós lá íamos. Era um longo caminho.

Lembro-me de haver por lá um extenso manto verde onde corríamos até nos cansarmos, de haver um cômbaro que subíamos na boa (principalmente eu) e depois tinha medo de o descer. Na maioria das vezes tinha de pedir a chorar que me tirassem lá de cima ou simplesmente vinha aos rebolões ter cá abaixo.

Com outros miúdos mais ou menos da nossa idade, era uma festa no campo. Levávamos recipientes que enchíamos de água e de terra para fazermos construções, corríamos pela erva verde ou pela terra e arremessávamos pedras ao poço.

Quando estávamos sozinhas, eu e a minha irmã, o passatempo de arrumar pedras ao poço era o mais atractivo. A nossa mãe avisou-nos que não nos queria à beira do poço, apesar de o muro ser bastante alto. Uma parte tinha já desmoronado e nós nem sequer nos aproximávamos. Limitávamo-nos a ficar junto ao poste, a apanhar os primeiros pedregulhos que encontrássemos e a arrumar à água. Quando as pedras batiam na água, ela salpicava e fazia barulho. Nós achávamos piada e continuávamos com a brincadeira. Claro que eu escolhia sempre os pedregulhos maiores para arrumar à água. Enquanto os arremessava, morria de excitação para ver o barulho que faziam e a água que levantavam.

Muitas vezes o nosso companheiro de aventuras era o Bruno- o neto da Senhora Justina. Antes de ele emigrar com os pais para os Estados Unidos, acompanhava a avó nas jornadas pelo campo. Ele trazia brinquedos que levávamos para o campo e ali nos entretínhamos. Guardo fragmentos dessas recordações em terras e pinhais que agora já não me lembro onde ficam. A última vez que brincámos juntos foi, salvo erro, num carreiro que ficava perto de casa dele mas já não me lembro bem. Já foi há muito tempo.

Numa terra que fica aí a cem metros de minha casa, que muitas vezes serve de cenário em muitos dos meus sonhos, não sei a que propósito, vivi uma das mais arriscadas aventuras. Há um pequeno riacho junto a essa terra, foi construída a ponte que serve de estrada onde passam os carros e que divide as duas margens.

Aquilo era perigoso. Um passo em falso e caíamos ao rio. Eu olhei para o fundo, numa bela tarde de Primavera em que o rio levava pouca água ou nenhuma, e vi algo verde a brilhar. Era uma garrafa vazia de detergente. Para a resgatar, tentei descer de costas mas não calculei bem a altura. Caí desamparada de costas no solo, em cima de um molho de mato que milagrosamente estava lá colocado. Tive cá uma sorte! Depois tinha medo de subir pela outra parte que era mais baixa e que ia dar ao mítico cenário dos meus sonhos que é a terra da minha vizinha. Quer-se dizer, não tive medo de descer ali mas tinha medo de subir pelo outro lado. Boa!

Para o fim guardo uma história saborosa. Num pinhal que eu não me lembro onde fica, os meus pais e outras pessoas andavam a roçar mato ou algo assim. Eu e a minha irmã andávamos lá. Ah, antes de continuar, o passatempo favorito nos pinhais, principalmente o meu, era tirar as tigelas da resina dos pinheiros. Às vezes levava uma grande quantidade delas para casa. Juntava-as num monte e levava as que podia. Muitas vezes eram mais as que ficavam espalhadas no pinhal do que as que eu levava para casa. Havia-as de plástico e de barro laranja. Essas eu lembro-me que eram pesadas.

Se calhar naquele final de tarde não devo ter encontrado tigelas de resina nos pinheiros, pois foi a outra actividade que me dediquei. O pinhal estava enlameado. Devia ter chovido nos últimos dias. Naquela tarde de Sexta-feira não estava a chover. Era Primavera ou Verão. Sei apenas que havia lama viscosa no chão.

Tínhamos levado uns bonecos de plástico, alguns foram coloridos mas já estavam desbotados e outros já lhes tínhamos sumido com as roupas. Eram uns poucos. As árvores eram frondosas. A ideia peregrina de besuntar os bonecos com lama e os arremessar através das árvores deve ter sido minha, só pode. Eu é que tinha essas ideias brilhantes. Eu brincava com bonecos de uma forma peculiar. Enquanto que a minha irmã brincava com bonecos de uma forma mais feminina e maternal, digamos assim, eu usava os mesmos bonecos alinhados como se estivessem na escola, enfiados em cadeiras que virava ao contrário a fazer de comboios e autocarros e...a praticar...”Desporto”. Naquela altura, sem o saber, o Desporto já povoava a minha vida. Arremessava os bonecos para o enorme tanque cheio de água por cima das videiras ou, simplesmente os mergulhava lá com as mãos a imitar Natação. Depois secava-os ao Sol. Uma vez a minha vizinha tinha umas coisas para colocar no lixo. Eu, como sempre vasculhei qualquer tralha que encontrasse com uma avidez incrível, levei um tubo com uma substância castanha para casa. Lembrei-me de besuntar um boneco plástico com essa mistela depois de o ter tirado do tanque. Aquilo era bronzeador. Acreditam que nunca mais saiu? Hoje procuro à venda um bronzeador tão bom como esse e não encontro. Ora bolas!

Bem, tudo isto serve para enquadrar a nossa aventura no pinhal naquela tarde. O que basicamente fizemos foi uma variação daquilo que acabei de mencionar. O princípio era o mesmo. Não percebi por que se tinha de besuntar o boneco antes de o atirar para longe por cima das árvores. Essa agora...

Depois de besuntados de lama, os bonecos eram atirados para longe. Tinham era de passar por cima das árvores que se mostravam frondosas naquela altura do ano. Nós atirávamos os bonecos e depois recuperávamo-los. Só que, como não vemos bem, demorávamos uma eternidade. Recuperado o boneco, voltava a ser besuntado e voltava a ser arremessado.

Chegou-se o ocaso e faltavam alguns bonecos. Lá andaram os meus pais a resmungar, a ameaçar bater-nos a procurar os bonecos que eram difíceis de encontrar por serem da cor da terra. A Senhora Justina acabou por achar um boneco meu mas faltava um da minha irmã. Andaram à procura dele até ser noite cerrada. A minha irmã chorava, a minha mãe queria-nos bater, a minha avó tentava acalmar as hostes…

A noite caiu e foram canceladas as buscas, por assim dizer. No outro dia de manhã, bem cedo, passaram umas pessoas de Vila Nova e acharam o boneco. Ainda não eram oito da manhã de um Sábado quando bateram à porta para entregar em minha casa o boneco com uma espessa camada de lama a cobri-lo.

Resumindo e concluindo, éramos terríveis mas pode-se dizer que fomos criadas na rua, ao ar livre e isso fez de nós umas pessoas saudáveis. Pode-se dizer que, naquela altura, experimentei ainda alguns laivos de felicidade.

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