Num final de tarde sombrio, resolvi fazer uma caminhada. Gosto de andar sem destino, somente ser guiada pela marcha inconsciente dos meus passos. Só assim tiro o maior proveito desta atividade. Não pensar em nada, nem sequer para onde vou, deixa-me liberdade para desatar as amarras do espírito.
Foi numa dessas tardes que me deparei junto de uma velha casa abandonada. Um velho portão ferrugento dava acesso a um longo caminho ladeado por um jardim abandonado. Ervas daninhas cresciam sem regras, apenas com a Natureza a ditar o seu curso.
Fiquei ali parada a observar o silêncio que subitamente povoou aquele lugar. Nem uma folha roçando ao vento se conseguia ouvir.
Encostei-me ao velho portão que já não tinha cor. Já aqui tinha passado antes, mas só hoje reparei no ar misterioso do local. Voltei a olhar para o que restava do jardim. De repente, algo chamou a minha atenção. Na vastidão cinzenta e castanha da paisagem, algo brilhou. Uma outra cor. Um tom mais vivo.
Aproximei-me para ver melhor o que era. Era uma flor vermelha. De onde estava, não lhe conseguia chegar. Tinha de ir lá dentro contemplar melhor aquele rasgo de vida, aquele rasgo de cor onde tudo faltava.
Experimentei o portão. Surpreendi-me por ele não estar fechado.
Um pouco a medo, fui caminhando em direção ao local onde eu tinha visto algo vermelho. Constatei que era uma única rosa encarnada. Como é que ela ali veio parar? Aquele jardim há muito que não viu mão humana.
Fiquei ali parada a contemplar aquela flor. Ia decidir se a havia de colher ou deixar ficar onde a encontrei. A decisão era difícil. Decidi que, se não a levasse, viria outra pessoa e faria o mesmo. Com cuidado para não me magoar nos espinhos, colhi-a e retomei a casa. Foi nesse percurso que senti algo estranho. Algo no meu interior mudou. Não sei dizer por que tinha essa sensação. Sabia apenas que algo estranho havia acontecido ou estava para acontecer.
Chegada a casa, coloquei a rosa numa velha embalagem de chocolate em pó com bastante água para que ela se conservasse por alguns dias. Nas noites seguintes, senti necessidade de fazer desta singela rosa vermelha minha confidente. Senti vontade de partilhar com ela toda a minha vida, todas as emoções, o meu estado de alma, o meu quotidiano, por mais insignificante que fosse.
Os dias foram passando. Estranhamente, não havia indícios de a rosa querer murchar. Sentia até que cada dia ela se apresentava de um vermelho mais vivo. Noite após noite, fui confiando toda a minha vida, mesmo os mais secretos desejos àquela simples flor.
Ia notando, ao mesmo tempo, que uma certa paz de espírito tomava conta de mim. Dormia melhor durante a noite, os meus sonhos eram povoados por cores e sentimentos positivos, estava mais calma e enfrentava todos os desafios, mesmo os mais amargos com um sorriso na cara. Amigos e colegas de trabalho perguntavam mesmo o que se estava a passar comigo. Muitos já atiravam que uma paixão era a causa deste meu comportamento mais calmo e assertivo.
Uma noite, porém, enquanto dormia, sonhei com um imenso jardim de rosas vermelhas iguais á que tinha apanhado naquela casa abandonada. A vermelhidão era a perder de vista. Nenhuma outra cor era tão dominante no meu sonho. Não estava a fazer nada. Apenas estava a contemplar. Ao meu lado, jazia um caderno vazio e uma caneta esquecida. Talvez o arrebatamento me impedisse de passar para palavras o que estava a ver.
Assim que acordei deste sonho, levantei-me e fui ver como estava a minha rosa. Mesmo antes de acender as luzes, reparei que o local onde ela estava brilhava intensamente. Era uma luz de todas as cores. Esfreguei os olhos. Estaria eu ainda a sonhar?
Fechei os olhos com força e voltei a abri-los. A luz brilhante não tinha desaparecido, apenas a cor vermelha dominava agora. Pareceu-me ter ouvido um sussurro, mas devia ser impressão minha. Não conseguia tirar os olhos daquele local.
Senti um ligeiro arrepio. Não sabia dizer se me sentia assustada ou apenas emocionada com o que acabava de presenciar. Talvez um pouco desses dois sentimentos.
Comecei a sentir o silêncio da casa avassalador. Sentia medo agora. Se me perguntassem por que me sentia assustada, não saberia dizer. Só sei que aquele sentimento crescia.
Queria sair dali. Acender as luzes. Dar vida a uma casa escura e silenciosa. Pouco a pouco, o silêncio foi substituído pelo bater forte do meu coração sobressaltado. Olhei para o local onde estava a rosa. Estava vazio. Não podia ser!
Queria sair dali e procurar a rosa. Não podia ser que simplesmente tivesse evaporado. Sentia-me incapaz de mover um único músculo. Estava paralisada, talvez de medo.
O meu pavor ainda aumentou mais ao sentir algo roçar por detrás de mim. Olhei e vi uma senhora muito bonita e elegante. Os seus lábios eram de um vermelho sem igual. Envergava um vestido requintado, também ele vermelho. Parecia vir de uma outra época. Hoje ninguém se vestia assim.
Com voz trémula, perguntei-lhe o que é que ela queria. A sua voz, ao mesmo tempo doce e maléfica, anunciou que queria vingança. Perguntei-lhe o que é que tinha feito e por que me escolheu a mim para se comunicar.
Ela respondeu que era indiferente a pessoa que escolhesse. Tinha de fazer sofrer essa pessoa como a fizeram sofrer a ela.
Perguntei se podia ajudar e ela respondeu que ninguém a podia ajudar. Somente quando fizesse alguém sentir uma dor igual á que ela sentiu seria vingada. Perdi o controlo e disse-lhe que tinha errado na pessoa a quem ia servir a sua vingança. Ela disse com frieza que pouco importava.
Ardendo de fúria, peguei no recipiente onde ela tinha estado e atirei pela janela. Foi quando reparei nos indícios de uma flor murcha.
A mulher que ali estava, inesperadamente, agarrou-me com uma força que não era deste mundo. Era impossível uma dama tão delicada agarrar alguém com tamanha violência. Ainda estava embasbacada com a força bruta da mulher, quando outro comportamento inesperado me deixou horrorizada. Uma dor aguda percorreu-me o pescoço. Ela tinha-me mordido. A dor era agora estranha, um misto entre mordedura e queimadura. Reparei que os seus dentes estavam raiados de sangue. Ela continuava a segurar-me. Tentei reagir, mas as forças abandonavam-me. Sabia que era o meu fim.
A manhã já ia alta. Não sabia dizer que horas eram. Sei que estava na minha cama. Instintivamente, levei a mão ao pescoço, ao local onde uma criatura maléfica havia cravado os dentes. Estranhamente, não detetei marca nenhuma. Mesmo os meus braços não tinham marcas de terem sido agarrados com força por umas mãos sob reumanas.
Com passos trémulos, saí da cama e desloquei-me ao local onde estava a rosa. Encontrei o recipiente vazio no chão. Água de um tom castanho espalhava-se pelo local. Tinha um cheiro desagradável. O que restava da brilhante rosa vermelha jazia a um canto quase debaixo do armário. Depois de limpar tudo, coloquei o recipiente e o que restava da flor no contentor do lixo.
Tudo não passou de um sonho estranho e nefasto. Para evitar que tal se voltasse a repetir, havia que cortar o mal pela raiz.
Dias mais tarde, passando por acaso pelo mesmo local, constatei com estupefação que jamais existiu ali uma casa velha com um jardim abandonado. Somente um terreno baldio dominava a paisagem.
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