Thursday, July 22, 2010

Se este dia não tivesse acontecido

Hoje, 6 de Julho de 2010, ando um pouco deprimida. Enquanto reponho frutas e legumes, não paro de pensar na volta que a minha vida deu desde aquela manhã de 6 de Julho de 2004.

Bastou um momento, poucos minutos, escassos segundos, uma meia dúzia de palavras para mudar para sempre o rumo da minha vida. Bastou uma notícia que desabou sobre mim para nada voltar a ser igual.

Naquela manhã esperava ansiosamente à porta do consultório nos Covões pela consulta. Estava morta por voltar a fazer aquilo de que eu mais gostava- praticar Desporto- depois daquilo que eu pensava que era uma normal paragem a seguir à intervenção cirúrgica aos olhos. Já não aguentava passar nem mais um dia sem calçar as sapatilhas, vestir o equipamento e dar uma corrida pela estrada como fazia naquela altura.

Chegada a minha vez, a primeira coisa que perguntei foi se já podia retomar a minha actividade desportiva. Foi nessa altura que, precisamente, tudo mudou e a última coisa que gostaria de ouvir foi mesmo a que ouvi naquele momento. O médico aconselhou-me a terminar a minha carreira por haver o perigo de descolamento da retina com o esforço. A pressão exercida sobre os olhos é enorme e com o esforço aumenta, o risco de cegar é enorme.

Fiquei desolada. Foi como se me tivessem despejado um balde de gelo em cima. Por momentos pensei tratar-se de um pesadelo do qual iria acordar. Um daqueles sonhos em que se chora compulsivamente como eu estava a chorar naquele momento e depois acordava ainda a soluçar abraçada à minha almofada.

Não era um sonho, infelizmente. Passaria a ser a minha realidade dali em diante. Tudo o que me dava alento para mim tinha acabado naquele momento. Todos os sonhos ruíram como um castelo de caras. O Desporto era a minha vida e, sem ele, viver não fazia sentido.

Através do Desporto aprendi a lidar com o facto de ser deficiente, coisa que me revoltava anteriormente. Comecei a sentir que tinha vida tal como as outras pessoas, que podia usufruir de tudo a que eu tinha direito. Foi graças ao Desporto que me tornei numa outra pessoa. Toda a gente reparava que estava mais sociável e que até me arranjava melhor. Eles tinham razão! Desaparecendo toda a revolta por ser diferente, o espírito fica livre para simplesmente viver. Via-me a dedicar-me com mais afinco às actividades de cada dia e os obstáculos tornaram-se mais fáceis de ultrapassar.

Graças ao Desporto pude conviver com pessoas de diferentes países com problemas semelhantes aos meus. Isso para mim era muito importante. Só o simples facto de se interagir com pessoas vindas de lugares com culturas diferentes da minha me enriquecia enquanto Ser Humano. Tinha amigos em diferentes países, amigos que nunca mais vi a não ser pela televisão. Hoje, seis anos volvidos, uma das minhas maiores mágoas é não saber onde estão nem como estão todas essas pessoas de quem guardo fotos e objectos que trocámos como relíquias, como uma pequena parte da sua presença na minha vida.

Graças ao Desporto tive a oportunidade de viajar e conhecer melhor esse Portugal que desconhecia. Nunca antes havia estado em Lisboa, no Alentejo ou no Algarve. Se tivesse continuado e dado seguimento ao que estava a fazer antes de ter sido operada, provavelmente teria viajado quase por todo o Mundo- aquele Mundo que conheço unicamente através do muito que leio. A cultura e a vida nos outros países fascinam imenso. Conheci a Polónia e poderia ter conhecido também a Holanda. Com muito sacrifício e a muito custo consegui ir mesmo à Holanda em circunstâncias que nada tiveram a ver com o Desporto. Foi um aparte.

Nem aqueles que foram meus colegas cá em Portugal voltei a ver. A última vez que estive com grande parte deles foi precisamente no dia em que anunciei a minha retirada, no longínquo dia 19 de Fevereiro de 2005 já depois de ter sofrido uma segunda intervenção cirúrgica. Sei que os meus colegas não me esqueceram, de vez em quando perguntam por mim ao Senhor Mário mas nunca mais surgiu a oportunidade de estarem comigo nem eu com eles. E já estiveram em Coimbra, por exemplo. Até nisto não tenho sorte nenhuma. Como tenciono eu reencontrar todos os meus amigos estrangeiros que comigo partilharam momentos bonitos e inesquecíveis se nem com os portugueses estou? Ser deficiente visual é duro e revoltante. Hoje não percebo por que razão alegadamente há pessoas que conseguem ter inveja de mim. Lamentável. Eu se não tivesse problemas, não invejaria a vida de uma pessoa que sofre muito como eu.

Foi nessa altura em que as coisas me corriam bem que até aconteceu aquilo que eu pensava nunca acontecer comigo- apaixonar-me por alguém de verdade. Eu pensava que o amor era um capricho, uma loucura, algo que me era impossível de compreender. Também foi preciso um único momento, poucos segundos, um rápido olhar para acontecer algo que eu julgava jamais acontecer comigo. Ele nunca soube, nunca lho disse e a distância passou naturalmente a esbater essa paixão. Tive contacto à distância com ele até 2006. Hoje essa paixão esbateu mas não deixo de sentir algo quando penso nele. Já não acordo a meio da madrugada de lágrimas nos olhos depois de sonhar que o reencontro por entre uma multidão de pessoas que envergam equipamentos coloridos e que nos abraçamos. Em 2005 quando as coisas pioraram, era ele que, sem saber, me dava força e coragem para continuar a viver. Só a sua presença, embora de forma remota, me fazia sentir que algo me prendia à vida.

Foi o Desporto que me fez, naquele ano de 2004, deixar a minha casa e partir para um novo rumo na minha vida. Tive de me adaptar com grande dificuldade, de lutar bastante até as coisas estarem dentro da normalidade. Quando isso aconteceu finalmente, eis que surge o agravamento da minha doença e a primeira operação que anunciaria o fim de todos os meus sonhos.

Uma semana antes de ser operada surgiu uma proposta para fazer o estágio profissional numa revista desportiva que havia na altura. Fui eu mesma quem mandou para lá o currículo por me identificar bastante com aquela publicação que aliava o dever de informar a alguma criatividade e imaginação. Muitos artigos que lia semanalmente nessa revista inspiravam-me novos temas para eu própria fazer os meus artigos. Tive grande azar na altura em que me foi feita essa proposta. Caso não tivesse acontecido nessa altura, teria arriscado ir para Lisboa, certamente haveria oportunidade de treinar com outras condições e hoje provavelmente não estaria aqui, não haveria todo o imbróglio que me impede de estar inscrita no Centro de Emprego e procurar algo como deve ser. Fico ainda mais triste hoje só de saber que, por ter tido este azar, estou onde estou. Com o meu talento, provavelmente, teria ficado ou sido encaminhada para voos mais altos.

Na altura escrevia para o jornal de Miranda do Corvo, desenhava, fazia rádio e ainda dava ideias para projectos ambiciosos para a associação. Depois daquela consulta tudo se perdeu também. Não foi só o Desporto. Tive de abandonar a instituição porque deixei de ter condições psicológicas para continuar lá. Tinha para lá ido em busca de melhores condições de treino, agora não fazia sentido continuar. Não estou arrependida de ter saído. Simplesmente teve de ser e o futuro, infelizmente, veio-me dar razão porque aquilo era o início do que eu iria passar no ano seguinte com mais duas operações e seus efeitos. Não tive sorte, só isso. Estava a fazer imensas coisas de que gostava. Tive de abdicar de tudo por antever que coisas piores dali vinham. Isso está escrito no meu mapa genético, o mesmo que diz que um dia, inevitavelmente, vou cegar completamente.

Nunca mais tive oportunidade de fazer rádio, um dos meus grandes sonhos da juventude, apenas ofuscado pelo sonho maior de ser alguém no Desporto. Na altura que precedeu a minha primeira operação, as pessoas diziam que eu podia entrar para o estúdio de rádio de lágrimas nos olhos, até com os olhos inchados de dias inteiros passados a chorar, o certo é que saía de lá com um sorriso estampado na cara. Lutei anos a fio por finalmente ver o meu programa realizado mas...tenho pouca sorte na vida e nem isso foi possível. Agora há uma hipótese remota de voltar a lutar por esse sonho mas hoje parece que há quem me condene a estar ali para sempre a repor frutas e legumes. É a vida que tenho!

Estive cerca de um ano e meio sem escrever fosse o que fosse. Não me sentia em condições. Só em finais de 2005, inspirada por alguns acontecimentos no seio do nosso grupo de formação, me aventurei a rascunhar aquele...como hei-de chamar...texto que não publiquei em lado nenhum enquanto os meus colegas que tinham mais dificuldade do que eu em lidar com os computadores recebiam a atenção devida do formador. Meses mais tarde, depois de muito ouvir falar em blogues sem saber o que eram e para que serviam e depois de saber que os Gato Fedorento ficaram conhecidos através do seu blog com o mesmo nome, resolvi tentar a minha sorte e abrir este blog que já conheceu muitos avanços e recuos. Nada que se compare ao sucesso que tinha a minha página de Desporto para Deficientes Visuais que também morreu em 2004 quando a minha carreira desportiva foi assim brutalmente interrompida. Não tive coragem de a reabrir noutro servidor. Tenho o conteúdo dela guardado num CD mas não tenciono fazer nada com ele novamente. Fica a recordação de ter sido a única página na altura em Português com informações sobre Desporto Adaptado, de servir de apoio a alguns trabalhos académicos e de ter sido pretexto para uma entrevista minha na Rádio Vaticano em Roma.

Apesar da pouca visão que ainda tenho, diz a crítica que desenhava bem. Alguns meses depois de eu ter saído de Miranda do Corvo, por acaso na véspera da minha segunda operação, telefonaram-me a dizer para eu lá ir. Não podia porque nesse dia tinha de ser internada. Mas o que é que eles me queriam? Estava lá a decorrer uma exposição de trabalhos dos utentes. Entre eles foi também exposto um dos meus últimos desenhos que fiz enquanto lá estive. Era um desenho um pouco ousado, se calhar até era por isso que olhavam tanto para ele. No desenho estava representada uma praia com pessoas integralmente nuas com ar feliz enquanto se banhavam e apanhavam sol. Quando diziam àquelas pessoas que aquele desenho tinha sido feito por alguém praticamente cego, ninguém conseguia acreditar. Queriam que eu lá fosse mas isso foi impossível. Depois disso, sensivelmente um ano depois, fiz um desenho que há-de estar algures neste blog num dos primeiros textos. Já não me lembro para que era mas penso que tinha qualquer coisa a ver com acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida. Também ele foi exposto no átrio da Câmara Municipal de Coimbra juntamente com todos os outros realizados nesse âmbito. A partir daí, também não voltei a desenhar. Tudo o que eu fazia nessa altura e que me dava prazer desapareceu.

Hoje resta-me a escrita mas, como eu trabalho e o trabalho me absorve grande parte do tempo, também isso se está a perder. Pensando bem, tenho este trabalho porque aconteceu o 6 de Julho de 2004 e ainda estou a pagar a factura da sua existência. Por isso hoje sinto-me triste por tudo na minha vida ter mudado assim de forma tão indesejável.

Ninguém compreende por que estou assim. Ninguém sabe a dimensão do que se passou e do que isto significou para mim. Lamento o Destino que foi escrito para mim. A minha vida é feita de oportunidades falhadas, parte delas por ter este maldito problema. Quando me habituo a viver com a sua existência, quando tento ignorá-lo, eis que ele surge e se revolta para me lembrar a todo o instante que o possuo. Quem consegue viver assim? E ainda me dizem que há pessoas com inveja de mim. Custa a acreditar que alguém inveje a vida de alguém que trabalha num supermercado dignamente a repor frutas e legumes mas com talento para ir mais além. Apenas não vai porque tem um problema que lhe rouba a todo o momento a oportunidade de ser feliz e porque aconteceu o 6 de Julho de 2004.

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