Tuesday, July 27, 2010

Os gananciosos

São três e meia da madrugada. Percival Figueiredo dorme a sono solto ao lado da sua esposa. Nos seus sonhos deve pairar o espectro da riqueza fácil…à custa da desgraça dos outros.

A noite está calma. O trânsito da cidade acalmou um pouco, apesar de ser sábado à noite. Até admira Percival estar a dormir tão descansado! Noites há em que ele se senta na sua poltrona de estimação à espera de fregueses, isto é, que alguém morra para ele vir a correr prestar os seus serviços à família enlutada.

Dos hospitais onde ele tem contactos ninguém ligou e dos bombeiros também não. “Mas será que hoje toda a gente chegue direita a casa? Nem um acidentezinho aí com umas dez vítimas?”. Farto de esperar, o cangalheiro adormece finalmente mas sempre com o espírito alerta.

O silêncio do quarto de Percival apenas é quebrado pelos seus intensos roncos que já levaram a sua mulher a consultar um especialista em apneia do sono e até a comprar as milagrosas fitas adesivas “Breath Right”. Nada nele faz efeito, apenas um toque de telefone a dizer que há defunto fresquinho.

Agora ao silêncio da noite é quebrado pela sereia de uma ambulância do INEM. Percival salta da cama ainda de olhos fechados, enfia as calças, a camisa e desce as escadas enquanto se calça. No seu parque de estacionamento estão seis viaturas funerárias de alta cilindrada. Percival escolhe a primeira que encontra. Tem azar. O carro não está a pegar.
- BOLAS! Era mesmo o que faltava! Lá se vai mais um negócio! Se o Anjos chega primeiro…

Não, ele não está a falar de anjos que levem o falecido directamente para o Céu. Fala de José Manuel Anjos- o seu rival directo nos negócios da morte. O Anjos vai mesmo para a porta dos hospitais e lares de terceira idade á espera de clientela. A sua Funerária dos Anjos é uma empresa que, apesar da crise, tem tido um lucro imenso. É por isso que Percival a inveja com todas as suas forças.

Percival, desta vez com um segundo veículo (um vistoso Mercedes cinzento- pena que seja para um fim tão triste), persegue a toda a velocidade o veículo do INEM que grita e ronca pelas ruas em extrema agonia enquanto segue a velocidade supersónica.

Há pouco trânsito nas ruas da cidade. Mesmo assim há regras a respeitar e a Polícia está atenta. Àquela hora nem tem contemplações em mandar parar uma viatura funerária que ainda por cima foi feita para andar devagar nos funerais. Mas não era a primeira vez que aqueles carros eram vistos a passar os duzentos quilómetros por hora dentro das localidades. O historial de multas dos veículos da frota da Funerária Percival já tem mais páginas do que os livros do Dan Brown.

O polícia toma nota de mais uma infracção cometida pela viatura cinco (a seis foi a que não pegou). Percival lá seguiu contrariado. A multa teria um valor simbólico, se compararmos o dinheiro que iria ganhar se chegasse primeiro que o seu concorrente directo.

Percival percorre as ruas desertas da cidade com mais calma. Desta vez repara na cor dos semáforos e tudo. Enquanto conduz, vai recordando lutas passadas em que ele e José Manuel Anjos foram protagonistas. Lembra aquela perseguição a uma ambulância em hora de ponta em que fez uma ultrapassagem a um veículo pesado. Ambos tiveram de parar e houve uma discussão feia.

Outra perseguição dos dois carros funerários a outra ambulância deu origem a um acidente em que ambos ficaram feridos sem gravidade e em que, tanto um como o outro, deverão ter rezado imenso para que o seu adversário morresse para lhe fazer o funeral.

O ponto de honra das quezílias entre eles foi em casa do Tó Bóias quando a sua sogra, vítima de uma doença terminal, estava mesmo a partir para o Além. Sem nunca ninguém ter sabido em que circunstâncias os dois cangalheiros souberam que a senhora estava no fim da vida, eles ali estavam à cabeceira do seu leito de morte á espera de se apoderarem do corpo quando este já não apresentasse qualquer vestígio de vida. Ainda a senhora não tinha soltado o último suspiro, já Percival se apoderava do corpo.

José Anjos não gostou da atitude do colega de profissão e apelidou-o de ganancioso e interesseiro. Começou dali a confusão e os dois envolveram-se numa brutal cena de pugilato digna de um ringue de luta livre. No calor da discussão, Percival pegou numa jarra de flores e tentou acertar em cheio no Anjos. Como as mãos estavam transpiradas com os nervos, a jarra escapou-se para trás e o seu conteúdo deslizou pelas suas costas abaixo. Era Inverno e estava um frio de rachar. Assim encharcado, Percival tremia que nem varas verdes, causando o riso nos presentes que, naquelas circunstâncias não se teriam rido assim.

O porteiro do hospital abre as portas a Percival e pergunta-lhe o que faz ali a uma hora tão inoportuna. Percival responde ao porteiro que para morrer não há horas inoportunas.

Percival apresenta-se na recepção do hospital ofegante e ansioso por uma perspectiva de negócio. Mesmo antes de dar as boas noites ao recepcionista, pergunta como está o doente que a ambulância acabava de depositar.
- O Senhor José Anjos parece que sofreu uma doença súbita quando estava na casa de banho e foi transportado para os cuidados intensivos.

Percival beliscou-se para se certificar de que estava bem acordado. Então o seu adversário era a vítima? O telefone toca na recepção do hospital. O recepcionista responde ao interlocutor apenas com monossílabos. Quando finalmente desliga o telefone informa:
- O Senhor José Anjos acaba de falecer.

Foi a melhor notícia que Percival alguma vez julgou receber. Fazer o funeral ao seu oponente era bom demais! A rejubilar de alegria, pegou rapidamente nas chaves da viatura e arrancou a toda a velocidade pelas ruas desertas de uma cidade calma e adormecida.

Por vezes a euforia a mais deixa-nos desatentos ao que realmente temos de prestar atenção. Percival vinha eufórico e a atenção na estrada foi negligenciada. Numa zona onde não havia casas, o carro que vinha em excesso de velocidade (agora com José Anjos morto já não se justificava) saiu da estrada e saltou o rail de protecção. Em baixo havia uma ribanceira onde acabou por se despenhar. Quando os bombeiros chegaram não tiveram mais nada a fazer senão confirmar o óbito.

Acabava assim a ganância desmedida de dois homens que não tinham escrúpulos e caíam no ridículo para conseguirem-se anular um ao outro. Valeu-lhes de muito.

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