Sunday, October 24, 2010

“O Dia Dos Prodígios” (impressões pessoais)



O que dizer desta obra? Devo dizer que não foi muito do meu agrado mas até foi giro ter procedido à sua leitura, quanto mis não fosse pela analogia que fui fazendo entre a vida nesta aldeia e a vida real na minha própria aldeia. Fazer esse exercício vale a pena.

Lídia Jorge, uma escritora algarvia, retrata a vida numa aldeia do Algarve antes do 25 de Abril. Todo o quotidiano da aldeia era narrado a partir do momento em que alguns habitantes afirmavam terem visto uma cobra enorme a voar depois de a terem morto.

A partir daí ninguém se calou com a cobra. Acho engraçado o facto de a descrição desta aldeia e dos seus habitantes se aplicar a qualquer aldeia portuguesa. Enquanto lia, ia fazendo comparações entre o quotidiano desta aldeia e o quotidiano da minha própria aldeia. A diferença não era muita. Havia pontos de encontro onde as pessoas se encontravam e falavam sobre a vida alheia, essencialmente. Normalmente isso acontece na mercearia ou na taberna. Na minha terra há um estabelecimento idêntico a este da Matilde Santiago em que as pessoas se comportam exactamente assim.

Quando o assunto são histórias de alcova, os habitantes da aldeia são implacáveis. Esse comportamento de virem espreitar à porta de casa das Carmas também se aplica ao quotidiano da minha própria aldeia. O Ser Humano do campo sempre teve uma fascinação enorme por se interessar pela vida íntima das pessoas. Naquele caso, a rapariga e a mãe já eram apontadas por toda a gente da aldeia por Carminha Parda ser filha do padre que, por conseguinte, foi afastado da paróquia.

Tal como em todas as aldeias, há sempre um casal com algumas disfunções em termos de relação entre os elementos. Eu comparei Pássaro e Branca justamente aos meus vizinhos de cima que não raras vezes se agrediam e agrediam os filhos. Agora tudo está mais calmo. Por brincadeira se diz que o cinema acabou. A título de curiosidade, uma das alcunhas por que é conhecido o meu vizinho de cima é justamente… “Passarito”. A probabilidade de alguém na minha terra ter lido esta obra é praticamente nula.

Havia ali dois idosos que tiveram imensos filhos mas que viviam sozinhos a recordar as suas vidas. Ambos estavam senis. Na minha terra havia assim um casal de idosos. Ambos já faleceram há uns anos mas eu não sei quem eram os filhos deles. Achava piada porque o velhote falava de uma coisa e a mulher falava de outra. E passavam assim quase todo o dia.

Outro episódio engraçado foi a forma como Carminha Rosa veio a descobrir que o noivo da sua filha tinha falecido. Essa passagem está brutal! Levou o jornal para o local onde tinha a retrete de madeira, também conhecida na minha terra por “cagadeira” e, enquanto defecava, ia passando os olhos pelo jornal. Eu penso que na minha terra já quase não há disso mas ainda me lembro de em pequena ter visto algumas em casa de algumas pessoas. Os meus tios tinham uma e guardavam todos os papéis para se limparem lá. Depois mais tarde é que o meu falecido primo fez uma pequena casa de banho.

Aliás, a escritora não nos poupa a todo o vocabulário que qualquer pessoa da aldeia utiliza. Aquela personagem chamada Jesuína Palha é mesmo demais! Também ela faz lembrar uma mulher que costuma trabalhar no campo lá na minha terra. A falar e tudo.

Será provavelmente a primeira vez que leio um livro e vejo lá aquela palavra tão querida de qualquer habitante das aldeias portuguesas sempre que se encontra com um desarranjo intestinal. Normalmente as pessoas do campo desconhecem a palavra diarreia. Quando vão ao médico ou falam para gente civilizada não podem dizer que estão de caganeira, que isso soa mal. Então dizem que estão “de soltura”- uma expressão bastante curiosa e que já deu azo a um debate entre algumas pessoas na ACAPO. Eu também estava presente e foi um riso. Toda a gente queria chegar a uma conclusão: porque raio as pessoas iam ao médico queixar-se de “soltura2? Acho eu que isso veio a propósito de um colega nosso estar a contar as suas tropelias nos últimos tempos em que se ouviu dizer que ele esteve no hospital com uma intoxicação alimentar. Ora aí está mais um sinónimo para a palavra “soltura”. Há ainda quem vá mais longe e diga:
- Sabe, xôdôtor, ultimamente tenho andado cá cuma sultura, que nem me astrebo a trabalhar. Fui ali à infromeira e amostrei-lhe o romédio que estava a tomar pró castrol…ela inda me mediu a atenção e disse que intrasse pra dentro do cunsultório.

Desde o início da obra que sempre pensei que o destino de Carminha era ficar com Macário e não me enganei. Aquele segundo pretendente era um malvado. Gente que faz mal aos animais não merece o mínimo de respeito.

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