Thursday, September 09, 2021

O estaleiro das obras

 

O dia amanheceu cinzento, esquisito. Algo de terrível andava no ar.

 

Abandonadas, jaziam ferramentas de trabalho em todas as direções. Uma nuvem cinzenta de poeira cobria o local. Tudo era cinzento, triste, sem cor, sem identidade.

 

Quem passasse, pouco distinguiria perante uma amálgama monótona de coisas da mesma cor. Só a olhos mais atentos foi possível vislumbrar algo mais.

 

Durante a sua caminhada matinal, ele parou um pouco para descansar e refletir sobre as obras que nunca mais acabavam para se ter sossego na rua. A azáfama do barulho de ferramentas a caírem e o zumbir das rebarbadoras estava a dar com ele em louco. Isto já não era para os seus oitenta anos de vida intensamente vivida. Agora precisava de tranquilidade.

 

Observando para lá dos andaimes, pareceu-lhe distinguir uma forma. Tinha medo de avançar mais para diante. Podia cair e quebrar uma perna, o que para a sua idade podia ser fatal. Mesmo assim, o seu cérebro estava em alerta. Havia ali qualquer coisa. Uma forma. Parecia um corpo. Seria?

 

Cautelosamente, apoiando-se no seu gasto bastão de madeira, o velho percorreu a distância até ao que ele pensou ter visto.

 

A pouco e pouco, o que á primeira vista era cinzento ganhou cores. Umas encardidas calças azuis se formaram na retina do velho. Depois os tons acastanhados do torso nu de um homem queimado pelo sol.

 

Uma onda de medo percorreu o idoso. A pessoa que ali estava não se mexia, não apresentava o menor sinal de vida. Se lhe tocasse, iria constatar a rigidez fria do seu corpo sem vida. Uma fina camada de pó cinzento cobria todo o local. Mesmo assim ele distinguiu que o corpo jazia de bruços.

 

Estava composto demais para ter sido uma queda. Além disso, os trabalhadores certamente não estariam em cima dos andaimes de madrugada. Por mais luz artificial que fosse colocada para eles continuarem a trabalhar assim que o sol se pusesse.

 

O andaime continuava intacto. Seria um trabalhador ou um sem-abrigo. O seu torso curtido pelo Sol indicava trabalho árduo ao ar livre. Pensou em chamar a polícia mas não tinha consigo o telemóvel. Uma perfeita irresponsabilidade não trazer telemóvel na rua. Se acontecesse alguma coisa…

 

Devagar, em passos cuidados, o velho afastou-se silenciosamente do local onde jazia o corpo, como se tivesse medo de o despertar. Ao fim de alguns passos resolveu voltar para trás. Algo o intrigava nesta sua macabra descoberta.

 

Olhou mais uma vez para o local. Ficou atónito. Não havia corpo nenhum. Apenas as mesmas ferramentas espalhadas pelo chão. Onde ele julgava ter visto um corpo humano sem vida, jazia um berbequim azul, um toldo de um cinzento acastanhado e um martelo pneumático.

 

Ele não sabia se se sentiria aliviado ou preocupado. Seria um indício de demência? Decidiu que não contaria a ninguém a estranha sensação que teve.

 

A padaria estava quase a abrir. Hora de tomar o seu pequeno almoço. A fome não era muita. Ele ainda estava assustado com a inexplicável visão que tinha tido ali naquele local.

 

A tarde daquele dia estava quase a chegar ao fim. Ele vagueava em pensamentos. Muita gente lhe perguntou o que se passava com ele. As pessoas achavam-no taciturno, preocupado, perdido em pensamentos. Ele sempre ia dizendo que não era nada. Que era do tempo que estava a adivinhar o outono. Não tardaria ali o inverno, tempo da solidão, do frio, da angústia.

 

A televisão era para ele a melhor companhia. Não perdia uma tarde em frente ao ecrã por nada. Ajudava a combater a sua melancolia de viúvo. Passeando pelos canais, chamou-lhe a atenção uma notícia de última hora. Estava uma equipa de reportagem em direto de um local onde houvera um acidente de trabalho.

 

Poisou o comando e deixou-se ficar. Ao fim de alguns minutos, o seu sangue gelou. Estavam a fazer cobertura de um acidente no estaleiro de obras onde ele nessa manhã pensou ter visto um corpo caído.

 

O Repórter de imagem deslocou um pouco a câmara. O velho não queria acreditar. No chão jazia um corpo exatamente na mesma posição que ele vira nessa manhã. As mesmas calças azuis poidas, o mesmo corpo curtido pelo Sol. Havia porém uma grande diferença. O andaime estava tombado para um dos lados.

 

A aflição do velho converteu-se num suor frio. O seu coração começou a bater de forma irregular. A última coisa que viu antes de tombar a cabeça em cima da mesa foi aquela cena que de uma forma premonitória lhe foi dada a conhecer poucas horas antes.

 

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