Tuesday, July 07, 2020

Aquele impessoal quarto de hotel



O congresso iria começar dali a três dias mas Artur gostava sempre de viajar três dias antes. Assim, tinha tempo para se adaptar a um clima diferente, a um novo fuso horário e podia sempre passear um pouco.

Consigo trazia apenas uma mochila de mão com os produtos eletrónicos e uma pequena mala de roupa. A bagagem não lhe pesava muito quando subiu as escadas rumo ao seu quarto no segundo andar de um hotel cinzento e sem vida.

O alojamento foi escolhido pela empresa que pretendia cortar nos custos de viagens e alojamento. Nada de hotéis luxuosos. Haveria certamente conforto em hotéis mais singelos. Olhando em seu redor, Artur pensou que este hotel seria cómodo mas deprimia o mais alegre dos hóspedes logo à chegada.

A receção estava despida de objetos decorativos. Somente um quadro com informações impedia as paredes de um branco acinzentado de ficarem vazias.

O empregado da receção parecia ter sido escolhido a dedo para não colidir com a falta de decoração do local. Já na casa dos sessenta anos, baixo e algo anafado, concentrava-se num conjunto de papeis quando Artur fez check in.

No segundo andar, Artur procurou o quarto duzentos e seis. O corredor era iluminado por uma luz que emitia mais sombra que luminosidade. A sorte era que os números das portas, mesmo com fraca iluminação, brilhavam soturnamente.

Artur colocou a chave na porta. Pensava que dentro do quarto iria ter o conforto que o hotel não demonstrava na receção e nos corredores. Assim que abriu a porta, foi recebido por uma escuridão opressiva. O pesado cortinado preto encontrava-se cerrado e nem uma fresta de luz daquele final de tarde penetrava no aposento. O espaço era pequeno e frio. Do mobiliário fazia apenas parte uma cama rústica, uma mesa e uma cadeira. Nada de um armário para arrumar a roupa. Havia um pequeno cubículo que era a casa de banho. Também esta divisão não ostentava decorações ou objetos. Uma toalha encontrava-se pousada dentro do lavatório. Nada mais. Parecia que o quarto não tinha conhecido sinal de vida humana há muito.

Com um inexplicável aperto no coração, Artur voltou a descer para procurar um restaurante. Já passava das sete da tarde e eram horas de jantar. Chovia um pouco quando se aventurou pelas ruas desconhecidas. Chapéus de chuva negros povoavam a paisagem. O tráfego nas ruas denunciava a pressa de chegar ao aconchego de um lar acolhedor. Fazia imenso frio. Estavamos em abril.

De volta ao hotel, Artur subiu para o seu quarto. Havia que descansar um pouco. A viagem havia sido longa e mal deu para dormir no avião. A viagem foi aproveitada para ler os jornais e consultar a bolsa.

Consultando o smartfone, Artur aguardava novidades dos seus amigos norte-americanos que chegariam no dia seguinte. Já sentia frio. Procurou o ar condicionado no quarto mas parecia mesmo não haver. Quando um quarto nem uma simples televisão tem, também não terá ar condicionado. A solução era mesmo ir-se deitar.

Era madrugada. Com suor frio a escorrer-lhe da testa, Artur levantou-se de um salto. Uma sensação de puro pavor percorria-lhe o corpo. Se lhe perguntassem a origem do medo, não saberia precisar. Talvez tenha sonhado alguma coisa que o tenha assustado. Se fosse esse o caso, estaria agora a rever imagens do pesadelo, como sempre acontecia desde que ele era um menino e corria para a cama dos pais a chorar com medo.

Desta vez a sensação era real. Parecia estar ainda mais frio no pequeno quarto de hotel. Nem um som se ouvia no corredor ou mesmo na rua. Abaixo da janela do quarto havia somente um jardim muito mal cuidado. A estrada ficava do outro lado. Nem dos outros quartos parecia vir o menor som

O frio oprimia cada vez mais. Mesmo os dois pesados cobertores não davam para aquecer. Voltar a adormecer seria difícil. O frio tiraria o sono e havia algo mais. Artur sentia que não estava ali sozinho apesar de não ver ninguém. A escuridão era completa, opressiva, pesada. A cortina preta ainda se encontrava completamente fechada.

O quarto e a pequena casa de banho tinham luzes fracas, tal como o corredor. Acende-las era uma solução mas o frio impedia-o de deixar o parco conforto que a roupa da cama lhe dava. Mais valia ficar no escuro, do que sentir ainda mais frio. Aquele quarto quase lhe fez lembrar a câmara frigorífica de uma morgue. Esse foi o mote para que pensamentos macabros lhe passassem pela mente. Nunca tinha visitado um espaço desses mas tinha lido o suficiente para o desencorajar a uma visita futura.

Imagens macabras de corpos estendidos em mesas de inox cobertos com lençóis que já não eram muito brancos povoaram-lhe a mente. Uma onda de medo invadiu-o. Nem um candeeiro havia na mesa de cabeceira para poder acender de repente. O telemóvel tinha ficado em cima da mesa. Para o ir buscar, teria de sair da cama, colocar os pés no chão frio e enfrentar o gelo daquele quarto que parecia aumentar à medida que os minutos passavam.

Resolveu afastar os pensamentos mais nefastos mas essa tarefa era difícil. Concentrou-se em assuntos mais mundanos mas a sua mente estava vazia de pensamentos bons. Tentou perscrutar melhor o ambiente que o rodeava. Deu-lhe a sensação de uma corrente de ar gelado vindo da porta. Mas ele tinha fechado a porta á chave. Ninguém a abriu certamente enquanto ele dormia. Com a escuridão, não conseguia ver se a porta estava realmente fechada. Talvez houvesse uma janela partida no corredor que fizesse corrente de ar e o frio entrasse por baixo da porta. Essa era a explicação mais lógica.

Virando-se na cama, sentiu a corrente de ar vir de outra direção. Ficou intrigado. Agora o ar gelado vinha da casa de banho que não tinha janelas. Desta vez tinha de arranjar coragem para enfrentar o frio e o que quer que oprimisse e alterasse o ar naquele quarto. Saltando da cama, dirigiu-se à porta da casa de banho. Surpreendeu-se ao vê-la fechada. Ele jurava que a tinha deixado aberta.

Com os dedos suados e a tremer, enfrentou o puxador da porta. Este não se moveu. A porta parecia fechada por dentro, o que era ainda mais estranho. O pavor começou-lhe a toldar as ideias. Como abrir aquela porta»? O QUE DIRIA NO DIA SEGUINTE?

O  melhor era voltar-se a deitar. No dia seguinte, a porta da casa de banho estaria aberta e tudo não teria passado de um sonho. Estava Artur ocupado com estas ideias quando um ruído lhe fez gelar o sangue. A porta abriu-se e a luz acendeu-se. Seria possível que alguém tivesse invadido o quarto enquanto ele dormia? Com que finalidade?

Espreitando através da claridade, não havia ali ninguém. Simplesmente a porta se abriu e a luz se acendeu sozinha. Quando Artur se aproximou da casa de banho, logo a porta se voltou a fechar com estrondo e a luz se apagou. Sem saber como, Artur viu-se arremessado com força na direção da cama. Atónito, olhou para todos os lados mas escuridão foi tudo quanto viu. Só podia estar a sonhar!

Um guincho suave voltou a despertá-lo dos seus devaneios. Uma ténue claridade começou a invadir o quarto e agora o ar frio vinha da janela. Olhando para lá, viu que a cortina preta estava aberta e a janela também. Era impossível continuar assim. Havia que voltar a fechar a janela. O frio era cortante. Apesar de ter colocado as mãos debaixo da roupa, já as sentia dormentes.

Quando se deslocou na direção da janela, foi impedido por uma espiral de ar gelado. Ficou sem reação. Petrificado, não conseguia tirar os olhos do que se passava no exterior. No céu escuro havia uma marca encarnada. Fazia lembrar sangue. As árvores do jardim balançavam mas não havia vento suficiente para as fazer mover assim. De repente, algo se soltou de uma dessas árvores. Algo que voou e entrou no quarto.  Talvez uma coruja ou um morcego.

Voltando a olhar na direção da porta da casa de banho, Artur viu novamente a porta abrir-se e a luz acender-se. Num impulso correu para lá mas o que viu gelou-lhe o sangue. De pé junto ao lavatório, encontrava-se uma criatura vestida de negro. A sua cara desprovida de qualquer expressão humana era de um branco glaciar. Ele lembrava-se da coisa que se soltou da árvorelá fora. Era um ser pequeno. Esta criatura era mais alta do que ele e ele até nem era baixo.

Tentou falar mas a voz não lhe saía. O terror toldava-lhe os movimentos. A luz voltou a apagar-se e algo forte o agarrou. Tentou lutar mas era uma luta de forças desiguais. O oponente era bem mais forte e todo o esforço para se libertar era inglório. Viu-se arremessado com toda a força para a rua. iria morrer. A queda era de um segundo andar. A criatura não o arremessou na direção do chão, antes o atirou na direção das árvores. Tentou ainda agarrar-se a um galho, o que conseguiu mas ficou horrorizado. Aquilo não era uma árvore comum. Do seu tronco escorria sangue e as suas folhas eram pedaços de pele. Contactando com elas, Artur começou a sentir o corpo todo arder de dor. Talvez o contacto com a árvore lhe provocasse alguma alergia.

Tentou gritar mas saberia que ninguém o ia ouvir. Ficou ali preso. Não chegaria ao chão. Talvez aquela árvore que lhe pareceu tão vulgar à luz do dia fosse uma sanguinária planta carnívora. Era impossível se soltar. Ele já fazia parte também da estrutura da árvore. Ele era a árvore.

No dia seguinte, atónitos funcionários de hotel, estranhando a demora do hóspede em descer para o pequeno almoço, subiram ao quarto para ver se lhe tinha acontecido alguma coisa. Encontraram a cama por fazer, a janela fechada, a cortina preta corrida e os pertences do hóspede no lugar onde ficaram na noite anterior. De Artur nem sinal.

Procuraram-no ao longo de dias, de semanas, de anos. Ninguém mais o encontrou. O seu desaparecimento ainda hoje permanece um mistério.

O hotel entretanto fechou. Encontra-se á venda mas ninguém o quer comprar. Preferem outros imóveis cheios de vida, com outra alegria e outro aconchego. Dizem que o hotel está assombrado mas ninguém se atreve a ir lá comprovar. O desaparecimento de um hóspede português há mais de dez anos é narrado ainda com pormenores mais ou menos macabros. O que terá acontecido?

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