Wednesday, March 16, 2022

Mehdi e o autocarro laranja e branco

 

Era noite. Por acaso nem era muito tarde mas Mehdi sentia-se extremamente cansado. Um pouco febril talvez. Assim que assentou a cabeça na almofada, adormeceu quase instantaneamente.

 

Logo foi levado para um cenário onírico que parecia retirado de outra era. O amarelo, o laranja e o castanho eram as cores predominantes no seu sonho, tal como  numa foto antiga, do tempo em que a revelação a cores dava os primeiros passos.

 

Encontrava-se sozinho num amplo espaço. Era um enorme recinto de terra batida. Nada de casas ou pessoas por ali. Ao longe notava-se que havia trânsito algures mas parecia ser um pouco longe.

 

Aquele colossal espaço parecia ser um enorme parque de estacionamento para os autocarros. Deviam ser centenas deles. Havia autocarros a perder de vista mas eram todos iguais. Eram laranja e brancos da rodoviária nacional, tal como era comum nos anos setenta ou oitenta.

 

Mehdi queria ir para o seu autocarro mas não via ninguém. Se calhar era ainda cedo para a hora combinada da saída. Um silêncio opressivo tomava conta do local, aqui e ali cortado por um canto de algum pássaro ou por uma buzina longínqua de algum veículo que passava na estrada. Nem uma reconfortante voz humana.

 

E agora como iria ele descobrir qual era o seu autocarro no meio de tantos iguais. Uma voz interior acabou por o repreender: “Devias ter fixado o número na frente da viatura! Neste mundo laranja e branco é assim que funciona”.

 

Mehdi sentia-se perdido. Acertar no autocarro que devia apanhar seria como procurar uma agulha num palheiro. Era uma tarefa quase impossível. Havia seguramente centenas de veículos todos iguais por ali. E agora?  O desespero e o medo começaram a tomar conta do seu espírito.

 

Foi então que uma voz interior o reencaminhou para a viatura 1547. Os seus pés reagiram inconscientemente e arrastaram-se até lá. O veículo situava-se sensivelmente a meio do espaço. Imediatamente ele se sentiu mais tranquilo. Já ouvia gente a falar dentro da viatura. Talvez fosse a única que tivesse vida.

 

Quando entrou, logo as pessoas se calaram e olharam para ele. Umas riam-se, outras apontaram-lhe um dedo acusador. Provavelmente já estariam á espera dele para seguirem viagem.

 

Só quando se instalou no seu lugar é que Mehdi reparou que havia anoitecido bastante rápido. Assim que o seu autocarro foi posto em andamento, logo um imenso ronronar de centenas de motores se fez ouvir. Seguramente milhares de faróis se acenderam quase em simultâneo. Estava na hora de seguir viagem.

 

As portas do autocarro estavam a fechar-se quando ele acordou ofegante. Sonho muito estranho, esse. Nunca tinha visto autocarros dessa cor. Que raio aquilo significava.

 

Sem sono nem qualquer vontade de regressar á cama, procurou no Google autocarros laranja e brancos da rodoviária nacional. Imediatamente foi remetido para uma foto já antiga com um exemplar de um desses autocarros. Ficou longos minutos a olhar para ela. Como foi ele sonhar com tantos autocarros iguais àquele?

 

Ficou com medo de sair de casa. O melhor era mesmo telefonar a alguém a avisar que estava doente.

 

Sempre atenta ao que se passava, mesmo a muitos quilómetros de distância, a Rapariga Das Calças Azuis também buscava algo no Google. Curiosamente a mesma coisa. Tinha acordado com uma forte vontade de redigir um conto tendo como assunto autocarros da sua infância. Aqueles laranja e brancos da rodoviária nacional atrás dos quais tanto correu sozinha ou com a sua mãe em Aveiro.

 

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