Thursday, September 29, 2011

Tudo ao molho (a ver se chegam todos vivos)

Começava a amanhecer. A velha ambulância branca com uma lista azul percorria as estradas esburacadas da aldeia. O semáforo incidia sobre as vidraças embaciadas das casas baixas . Começava a faina para Celestino Dionísio.

O motorista dos Bombeiros tinha por missão transportar os doentes para as unidades hospitalares do Porto para ali realizarem tratamentos e efectuarem consultas. Se as condições de trabalho já não eram as melhores, pioraram consideravelmente com os cortes que é preciso fazer no que diz respeito ao transporte de doentes. Todos os dias passaram a ser um suplício porque a ambulância vai superlotada e as queixas são mais que muitas.

No banco da frente, junto ao condutor, vai Adelaide Vasconcelos, cinquenta e oito anos, que vai fazer mais uma sessão de hemodiálise. O genro podia-a ter levado ao hospital mas o horário foi-lhe mudado recentemente e passaria a entrar ao serviço por volta das cinco da manhã. A seu lado no outro banco viaja Albertino Abrunheira que já conta mais de oitenta anos e não tem mais idade para se ralar com chatices como as que normalmente costumam acontecer naquelas viagens.

Dali a nada, a velha e gasta ambulância ficará cheia de doentes a caminho do Porto. Se for como da última vez em que o velho precisou do transporte dos Bombeiros para ir á consulta dos ossos…

Albertino Abrunheira recorda que, há sensivelmente duas semanas, a ambulância teve de parar aí umas dez vezes sem exagero. Iam quatro pessoas à frente e só pode ir o condutor e mais duas. Atrás seguiam umas dez pessoas, incluindo três idosos acamados e não incluindo duas crianças de tenra idade que iam ao colo das mães.

Há muito que Celestino Dionísio tem alertado para o estado lastimável em que se encontram as viaturas dos Bombeiros. Nem uma ambulância se aproveita e as melhores são usadas em situações de emergência. Ficam as que estão em pior estado para o transporte de doentes. Se não chegarem à consulta às oito, chegam às nove ou até às dez.

Naquela manhã, a sobrecarregada ambulância branca com uma lista azul arrastava-se penosamente pela estrada. Para além de vir a menos de vinte por hora, ainda fazia uma chinfrineira horrível na tentativa desesperada de se mover. Algumas pessoas abriam as janelas para verificar qual era o veículo que por ali passava. Se acaso o alarme da ambulância viesse ligado, seriam menos os curiosos que se levantavam da cama e iam espreitar o que tinha sucedido.

Ao subir uma ladeira íngreme de uma pequena aldeia, a ambulância quase andou para trás, tal era o peso da carga. O veículo ainda parou à porta de casa de uma moradora. Alzira Bulhão era cliente habitual dos Bombeiros e raramente estava pronta quando a ambulância lhe parava à porta. Numa ocasião estava ainda na cama quando a ambulância chegou e tiveram de estar meia hora à espera dela.

Desta vez a ambulância parou com uma guinada à porta da velha casa amarela. Como a inquilina não se encontrava junto à porta, Celestino Dionísio aplicou duas valentes buzinadelas. Uma vizinha ainda pegou no porta-moedas e, em camisa de dormir que quase arrastava pelo chão, perguntou se já era o peixeiro que lá vinha. Vendo que era a ambulância, voltou a correr para dentro e o bombeiro não escondeu uma sonora gargalhada.

Ao fim de quinze minutos, Alzira Bulhão lá apareceu ainda a vestir um casaco vermelho de malha e a enfiar a carteira dos documentos dentro da sua bolsa. Ainda mandou o bombeiro esperar um pouco porque tinha de verificar se tinha apagado o gás, se tinha deixado o ferro desligado e se tinha deixado a chave na porta. Quando voltou ainda pediu ao bombeiro que não fosse embora sem que ela passasse uma última vistoria à sua bolsa, pois tinha medo de se esquecer do dinheiro e dos documentos. O bombeiro ainda resmungou que a tinha visto colocar a carteira dos documentos na bolsa. Dando uma olhadela à casa antes de arrancar, Alzira Bulhão ainda ficou especada a pensar se tinha deixado água ao cão. Com tudo isto, já a manhã ia alta.

Ressonavam lá atrás. Era uma idosa que ia deitada numa maca que até ia meio inclinada para dar espaço para caberem outras duas e duas cadeiras de rodas de dois senhores que tinham sofrido AVC e que agora iam para a reabilitação.

Numa travagem mais brusca, uma das macas que ia inclinada precipitou-se para cima de outra e as suas duas ocupantes terminaram ridiculamente abraçadas uma à outra. Como estavam muito senis, logo se arranharam e puxaram os cabelos uma à outra. Só alguns quilómetros à frente é que Celestino Dionísio deu conta do burburinho que cada vez mais subia de tom.

Colocadas as macas no sítio, a viagem prosseguiu mas foi por pouco tempo porque uma das mães de uma criança de colo acabou por se sentir mal, tendo mesmo desmaiado. Albertino Abrunheira praguejava, acrescentando cada vez mais palavrões a cada frase que proferia. Com tudo isto já levavam quase uma hora de atraso.

Um forte cheiro a gasolina invadiu as narinas dos doentes e alguns já se queixavam de dores de cabeça e de enjoo. Uma das idosas que ia numa maca tinha já vomitado, mas ainda não se tinha notado o cheiro por o odor a gasolina ser activo de mais. A ambulância ia a derramar combustível. Ao preço que ele estava…

Nem mais um passo aquela viatura podia dar nessa manhã e ainda estavam longe do hospital. Celestino Dionísio telefonou para o quartel a ver se um seu colega vinha ao seu encontro com outra viatura. O comandante dos Bombeiros começou a resmungar do outro lado da linha e Celestino perdeu as estribeiras. Sem se preocupar em ser ouvido pelas pessoas que transportava, o condutor da ambulância mandou o comandante para um lugar pouco recomendável. Alzira Bulhão ficou muito escandalizada, ela que havia aproveitado a paragem para verificar novamente o conteúdo da bolsa e para se pentear com uma escova de plástico de cor branca.
Eugénio Rosário apareceu uma hora depois com uma ambulância branca com uma lista encarnada que parecia em melhor estado mas…era visivelmente mais pequena. Como iria caber toda aquela gente lá dentro?
Ainda se teve a ideia de levar os acamados primeiro e depois vir buscar os outros mas logo um coro de protestos se fez ouvi. Alzira Bulhão ergueu a sua voz bem esganiçada para dizer que ia reclamar.

Procedeu-se à espinhosa tarefa de retirar os doentes da viatura avariada. Ao tentar tirar os senhores das cadeiras de rodas, verificou-se que ambas se tinham entrelaçado uma na outra e o espaço de manobra para as tirar era muito reduzido porque as macas ainda estorvavam.

Tiraram-se as macas primeiro e essa tarefa ainda demorou aí uns dez minutos porque uma das idosas estava muito agitada e não parava quieta. As outras duas macas, já se sabia, estavam inclinadas e havia que as retirar com todo o cuidado.

Apesar de se terem retirado as macas para a outra viatura, as duas cadeiras de rodas continuavam entrelaçadas uma na outra e nenhum dos bombeiros conseguia detectar onde é que ambas estavam presas. Queria parecer a Celestino Dionísio que uma das cadeiras, para além de presa na outra, ainda estava unida à própria viatura por um qualquer parafuso solto.

Ali estiveram meia hora só para decidir como resolver este imbróglio. Com tudo isto já passava e muito das nove da manhã e toda a gente apresentava um humor péssimo. Por fim lá se tiraram as cadeiras para a outra viatura. Bem apertadas, as duas cadeiras e as três macas lá couberam à justa e a ocupação dos dois bancos da frente gerou ali grande discussão. Ambos os bombeiros decidiram, para grande desconsolo de Alzira Bulhão, que quem os ocuparia seriam as mães com as crianças ao colo. Estava a ficar calor e as crianças já choravam.

Houve então que chamar um táxi para transportar os restantes mas…com eles a pagarem e era se queriam chegar mais depressa.

Hoje Celestino Dioniso só pede uma viagem mais tranquila mas não irá ter essa sorte. Enquanto estiverem em vigor estas condições de transporte de doentes só se podem esperar mudanças para pior.

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