Sunday, January 02, 2022

O exorcismo do Mehdi

 

Com os olhos da alma, a rapariga Das Calças Azuis viu com angústia que algo estava muito errado. Viu um aposento cheio de gente. Gente envergando vestes negras. Gente que não usava máscaras nem cumpria distanciamento social. Gente que sussurrava de forma ensurdecedora. Gente que transmitia uma sensação de perigo, de insegurança, de algum tipo de ameaça.

 

A Rapariga Das Calças Azuis viu com os olhos da alma o Mehdi estendido na cama que essas figuras disformes de negro vestidas rodeavam. Ele tinha os olhos fechados e dava a sensação que algo se passava. A Rapariga Das Calças Azuis sentiu que podia fazer alguma coisa, mesmo á distância. Não sabia o que se estava a passar ali mas boa coisa é que não era.

 

Entrando mais na profundeza da mente, ela viu algures treze velas negras bruxuleantes, ardendo de uma forma lúgubre da qual não gostou nada. Sem sequer se ter apercebido, ela estava a chorar. O que é que aquelas criaturas ali estavam a fazer? A rapariga de Calças Azuis pediu iluminação ás forças do Bem, já que do Mal pareciam vir todas aquelas pessoas. Ela não as tinha ainda contado mas pareciam muitas. A certa altura, com os ouvidos da alma, ela ouviu as suas vozes de velhas a sussurrarem, a murmurarem preces, a lamentar algo.

 

Indiferente a tudo isto, Mehdi permanecia deitado na cama. Quieto. Imóvel demais para o gosto da rapariga de Calças Azuis.

 

Outra mulher vestida de preto entrou com uma tigela fumegante. Um arrepio de pavor   inexplicável percorreu o seu espírito. Não! Aquela bruxa não podia obrigar o Mehdi a beber aquela mistela. Não podia mesmo. O que fazer? Ela já levantava a colher. Aquilo era de uma cor repugnante.

 

Ela tentava á força que ele comesse ou bebesse aquela coisa. Apesar de lhe faltarem as forças por qualquer motivo, ele virava a cara. Só o facto de ter algo de comida junto a si lhe causava náusea e repulsa. A Rapariga De Calças Azuis apreciava o espetáculo.

 

“Vá, toma um pouco, meu amor! Vai-te fazer bem!-” parece ter ouvido ela a mulher malvada dizer. Mehdi tentava chegar a cabeça o mais longe possível da tigela com aquela poção que não parecia ser confecionada para bons princípios. A Rapariga Das Calças Azuis até achava que as criaturas é que o estavam a pôr doente com tudo isto.

 

De olhos fechados, alheio ao que se passava ao seu redor, mehdi ia sorrindo de vez em quando. Ia balbuciando coisas ininteligíveis para os ouvidos daquelas mulheres. Elas que continuavam a segredar, a sussurrar com as suas vozes horríveis. De vez em quando virava-se na cama e logo caía numa modorra doentia.

 

Novamente a mesma criatura  continuou a insistir naquela  mistela repugnante. Apelando a toda a sua força vital, nem que fosse a última coisa que fizesse, a rapariga De Calças Azuis tentou intervir à distância. A mulher da tigela fumegante ficou atónita, o recipiente partiu-se em mil pedaços. O conteúdo ficou espalhado no chão. As outras criaturas logo se benzeram e entoaram silenciosamente orações  de afastamento de forças do Mal. Mas as forças do Mal eram elas próprias.

 

As treze velas negras ardiam algures com cada vez maior intensidade. Isso preocupava a Rapariga Das Calças Azuis que não estava a perceber o que elas estavam ali a fazer e muito menos onde é que elas ardiam. Parecia numa gruta ou algo assim. Ela concentrou-se um pouco mais e pareceu ouvir com os ouvidos da alma o barulho das ondas do Mar.

 

Uma figura alta vestida de negro entrou no quarto de Mehdi. Trazia consigo uma cruz e um livro. Trazia também um recipiente de água. Ao contrário do que acontecia com as mulheres, esta entidade não despertava um sentimento de perigo.

 

“posso começar?” -ouviu ela o homem perguntar para a multidão de aves de rapina que se encontravam no quarto. Elas murmuraram cada vez mais alto. Abriram também livros e desdobraram papeis, alguns deles já encardidos pelo uso.

 

A Rapariga De Calças Azuis Reconheceu que o homem no quarto era um padre. Preparava-se para fazer um exorcismo. Mas quem ali o chamou? Indiferente a tudo, Mehdi parecia estar a dormir placidamente. Não tinha de modo algum ar de quem estava possuído. Mas que ideia foi a daquela gente? A propósito, quem eram aquelas mulheres e o que faziam ali junto ao seu leito?

 

O padre aspergiu o quarto com água benta. Ao contrário do que sucede quando o Demónio se apodera de alguém, Mehdi manteve-se onde estava. Para surpresa do padre, urros trovejantes saíram de outro canto da divisão. Assumindo feições muito estranhas e pavorosas, uma das velhas saiu do quarto apoiada em quatro. Com uma rapidez incrível para uma mulher certamente com mais de oitenta anos.

 

Indiferente a isso, o padre continuou. Desta vez tirou do bolso um rosário. Sons de rosnidos, miados e grasnidos se fizeram ouvir. Não vinham da cama do doente. Mais uma vez, vinham daquelas pessoas que ali se encontraram. Uma a uma, voando, rastejando ou saltando,  foram saindo do quarto que de repente se tornou mais claro e menos lúgubre.

 

Apenas duas pessoas se mantiveram no quarto. o padre prosseguiu com a reza. Empunhou o crucifixo junto de Mehdi que continuava a dormitar. De vez em quando estremecia mas os seus movimentos nada tinham que ver com possessão. Tinham a ver com febre, com algo mais terreno. Nem por uma vez abriu os olhos.

 

O padre chegou á conclusão que nada ali havia a fazer. Os demónios tinham fugido para a rua e eram aquelas mulheres que eram suas portadoras. Elas fugiram para parte incerta. A Rapariga De Calças Azuis viu com os olhos da alma para onde elas foram. uma a uma, fizeram um círculo onde ardiam as treze velas negras. Havia que acabar com aquilo e depressa. Padre nenhum conseguia atingir fundo aquele nível de maldade.

 

Apelando ainda mais aos poderes das boas energias, a rapariga De Calças Azuis implorou que algo fosse feito. Ela viu com alívio, através dos olhos da alma que uma onda apagou as treze velas negras. Que as mulheres foram arrastadas por forças ainda mais poderosas do que as forças do Mal que sempre invocaram.

 

Entretanto, no quarto do Mehdi, ele abriu os olhos e sorriu. Pediu água a uma das duas mulheres que resistiram. Foi-lhe entregue um copo de água que bebeu sofregamente. Logo lhe encheram outro copo que também foi bebido com a mesma sofreguidão. Ele caiu num sono reparador que durou largas horas.

 

Quando acordou dois dias depois, estava completamente revigorado, cheio de energia. Pronto para salvar o Mundo, se isso lhe fosse pedido.

 

Caminhando alguns dias depois á beira-mar, ele deparou-se com uma mancha negra na areia. Chegando mais perto viu que era cera derretida de treze velas negras, perversamente emaranhadas e retorcidas umas nas outras. Sem saber o que era aquilo, prosseguiu assobiando uma canção que tinha ouvido na rádio naquela manhã. Ou seria na noite anterior?

 

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