Friday, January 14, 2022

Nada nas mãos, tudo na mente

 

Fui desafiada por alguém com quem tinha algumas desavenças para um duelo de Vale tudo. Seria um duelo mortal onde só uma de nós sairia viva.

 

Estive para não aceitar mas o meu orgulho falou mais alto. Sentia o cheiro de adrenalina no ringue, o ulular das pessoas em volta torcendo pela sua favorita. Tudo isto não me fez vacilar e na hora aceitei o duelo. Estava cem por cento certa de que iria sair vencedora, apesar da falta de escrúpulos e de moral que eu sabia que a minha oponente possuía.

 

Estava  de consciência tranquila. Ela ia-se arrepender de me ter desafiado. Alguma cobardia da parte dela fazia com que me defrontasse na frente de toda a gente. Ao  contrário de muitas lutas que ocorrem naquele espaço, não era um valor monetário que estava em causa. Somente valores morais e de honra estavam em jogo. Ela ofendeu-me? Caluniou-me? Iria ter de pagar. Por sua vez, ela também dizia o mesmo de mim e já estava a dizer a toda a gente que este combate eram favas contadas. Ela muito se preparou, engendrou armas e golpes baixos para me derrubar mas eu não estava minimamente preocupada. Ela iria ter uma surpresa enorme quando subisse ao ringue. Inicialmente ela iria rir mas depois as coisas seriam muito diferentes. Estava prometido.

 

Chegou finalmente o grande dia. Música de filmes de ação tocava na instalação sonora do pavilhão onde se situava o ringue. As bancadas estavam repletas de entusiastas espetadores que ali se deslocaram para assistir ás lutas do dia. Neste desporto potencialmente mortal, a imprevisibilidade era o ponto de ordem e dava emoção aos combates. Mesmo que estivessem no ringue dois oponentes muito distintos, o resultado do combate era sempre uma incógnita. Tudo dependia das armas. As minhas iam ser memoráveis.

 

Foi-me atribuído o canto vermelho. Os meus calções de combate eram também rubros e rebrilhavam com a iluminação das instalações. Tinham umas riscas brancas na vertical ao longo das ancas. Iriam certamente dar sorte.

 

Ao contrário do que se podia pensar, não estava nervosa. Nem uma pontada no estômago. Quem tinha de se preocupar seria a minha oponente que jamais sonhava o que eu tencionava fazer. Podia vir com um arsenal de armas perversas. Eu ia-lhe dizer onde ela as iria guardar.

 

Pela instalação sonora, ouvi o meu nome. O público fez-se ouvir. Confortou-me saber que a maioria dos adeptos estava comigo. Logo que foi anunciado o nome da minha oponente, uma vaia monumental se fez ouvir. Tudo estava preparado para dali sair em ombros. As pessoas que ali estavam não se iam arrepender. Jamais iriam esquecer esta luta.

 

Entra no ringue a minha adversária do lado oposto á minha entrada. Envergava uns calções de combate de uma tonalidade amarela. Em matéria de força física, não éramos muito diferentes mas o que é que isso importava, tendo em conta o que planeava fazer. Muita gente pensaria que eu partiria em desvantagem e por isso torciam por mim mas, quando o combate começasse, o pavilhão rugiria de entusiasmo.

 

Não houve lugar a cumprimentos como num combate normal. Ali era o ringue de Vale-Tudo. As pessoas que ali estavam a combater não nutriam grande simpatia ou desportivismo uma pela outra. Da minha parte, jamais iria cumprimentar aquela criatura que me desafiou para aquele duelo quando eu estava bem descansa Dinha no meu canto. Deixem estar que isso iria ser pago com juros.

 

Tal como eu previa, a minha adversária entrou no ringue com um arsenal de armas e objetos contundentes, cortantes, corrosivos e eticamente reprováveis que tencionava utilizar em mim. Nem fazem ideia do arsenal de maldade que ali se encontrava. Desde tesouras com bicos bastante afiados a um cão feroz a espumar abundantemente pela boca e a rosnar baixinho, parecendo que estava a lavrar uma sentença a meia voz.

 

Pelo contrário, eu apresentava-me no ringue de mãos vazias, para grande espanto dos presentes. Vendo isso também, logo a minha adversária arvorou um sorriso de orelha a orelha. Com isso, ela já tinha o combate praticamente ganho. Isso pensava ela.

 

Soou a campainha do primeiro round, ela já empunhava uma faca pequena mas muito afiada. Com as minhas  mãos nuas, aparei o golpe e a faca logo se cravou no soalho. O juiz recolheu esta arma e não deu a vitória a ninguém.

 

Ela sacou de uma faca muito maior. Foi com ela que me confrontou. Apenas com um só pensamento, a faca voou para longe, aparecendo partida em duas do outro lado do ringue. Aqui foi dada vantagem á minha pessoa. Isto apesar  de não compreenderem como é que eu consegui partir a faca.

 

Agora ela impunha um cutelo ferrugento. Sem motivo aparente, o seu braço verga e o instrumento de corte cai com estrondo no ringue. Ela agarra-se ao braço como se ele tivesse sido puxado com força. O juiz olhou para ela sem nada compreender e perguntou-lhe se ela estava em condições para prosseguir. Com visível esgar de dor, ela acenou afirmativamente.

 

Poucos minutos depois, a minha oponente começou a ser acometida de um intenso prurido. Isto quando ela preparava uma seringa com um produto qualquer de uma cor esverdeada e repugnante. Certamente iria-me injetar aquilo mas ela iria pagar bem caro a afronta. Com horror, os espetadores reparavam que a pele dela ia-se cobrindo de horríveis pústulas. Eram muito estranhas. Uns círculos pequenos e negros na pele com um ponto vermelho e sanguinolento no centro. Sangue começou lentamente a escorrer daqueles pontinhos vermelhos em carne viva. Alguns pingos já salpicavam o ringue. Houve uma pausa para que ela se recompusesse e para que o pavimento fosse limpo e desinfetado.

 

Ela parece ter mudado de ideias. Agora era com um frasco que parecia conter ácido que ela tencionava me atacar. Tinha de lhe aumentar as provações. Sem que nada o fizesse prever, ela dobrou-se em duas com a mão no estômago. Foi-se agachando e os seus calções de uma tonalidade amarela ficaram mais escuros. Os esfíncteres dela cederam enfim. Alguns dos presentes nas bancadas reagiram com gargalhadas, outros com gritos e outros ficaram ainda perplexos. Um líquido amarelo saiu também da sua boca e, por incrível que pareça, alguns dentes dela também rolaram no ringue sem que eu lhe tivesse aplicado algum murro ou soco.

 

Eu continuava descontraída. Apenas a minha mente trabalhava para travar os ataques desleais e maléficos dessa criatura que chamou o seu cão com uma voz rouca e débil. Enquanto isso, ela encostou-se ás cordas pronta a desfalecer.

 

O animal dirigia-se na minha direção. Rosnando e arreganhando os dentes, sempre com a espuma a transbordar da sua boca ameaçadora , preparava-se para me morder. Concentrando-me um pouco mais, cheguei á horrível conclusão que o cão tinha raiva. Além disso, não era propriamente um cão. Era um espírito do mal que sempre acompanhava a minha oponente. Seria mais difícil eu dominá-lo mas não seria impossível. Teria mesmo de dar o meu melhor para o levar de vencido.

 

Concentrando-me ao máximo, alheando-me do silêncio que entretanto se fez sentir no pavilhão, só voltei a mim quando a criatura emitiu um horrível uivo. De seguida tombou no chão pesadamente em convulsões e espasmos. Em pouco tempo, não só estava morto, como o seu corpo depressa se desintegrou, formando uma mancha disforme no ringue que só com muita imaginação alguém  conseguia afirmar que, há pouco tempo atrás aquilo fora um cão.

 

Tremendo convulsivamente de encontro ás cordas, a minha oponente estava humilhantemente sentada no chão. A pele dela apresentava-se escamosa e de um tom esverdeado. Aquelas lesões de há pouco tinham-se transformado numa horrível coleção de crostas. Foi o que ela mereceu. Desdentada e com aquela aparência animalesca, ela estava no mínimo repugnante. Os paramédicos nem sabiam como a abordar para a levar a um hospital. Era um autêntico monstro fedorento e repulsivo.

 

Ao fim de muitos minutos, lá a conseguiram transportar para uma ambulância.

 

Sem um único beliscão, eu acenava ás bancadas que me aplaudiam. Dezenas de microfones foram colocados á minha frente. Toda a gente queria saber como é  que eu tinha feito aquilo.

 

Simplesmente repeti o meu lema: nada nas mãos, tudo na mente.

 

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