Acordo cedo hoje. Poderia ter ficado mais uns minutos na cama mas uma força estranha me empurra para fora. Algo me sussurra que devo escrever. Eu, que pouco tempo dedico a registar os desígnios da alma.
Já li imensos livros, sempre gostei de ler mas escrever nunca foi uma prioridade. Quando muito escrevia uma lista de compras, um lembrete para algo que não podia esquecer e pouco mais. Escrever um livro, penso eu que é um ato grandioso. Um ato de coragem, de alguma resiliência. Um empreendimento brutal. Não sei se estou á altura.
Começo a pensar nos livros que já li. Foram alguns, não foram muitos. Começo a lembrar-me de como os autores os iniciaram. Tiveram de começar de alguma forma. Uma ideia lhes terá surgido, quem sabe mais do que uma. Provavelmente a mesma voz lhes gritou na cabeça que escrevessem. Qualquer coisa. Não forçosamente um livro.
Nesta casa não há computador, máquina de escrever, apenas um velho caderno com folhas já amarelecidas pelo tempo. Alguém aqui o deixou esquecido. Agora preciso de achar algo com que escrever. As mãos formigam, pedem uma caneta ou um lápis. Pedem que as palavras se materializem no papel que por enquanto ainda se encontra desprovido de letras, palavras e frases. Vasculho na bolsa que trouxe. Uma solitária caneta se mostrou. Se ela não escrever, não sei como calar as vozes que rugem mais alto dentro de mim. Vozes que imploram que escreva.
Experimento a caneta na palma da minha mão. Um risco de tinta azul se mostra por entre a minha pele calejada. Muitos anos, muitas memórias. A minha longa vida deveria certamente dar boas histórias. Esta comunidade de seres invisíveis que me chamam, que me gritam para escrever, deviam pelo menos me dar ideias de como começar. Depois talvez me deixasse ir. Como um barco ao sabor das ondas.
Coloco a caneta entre os meus dedos trémulos. Sinto um certo nervosismo sem nada que aparentemente o tenha causado. Estes dias solitários estão a fazer com que sinta coisas estranhas e inexplicáveis. Nunca antes na vida senti uma vontade irreprimível de escrever. Escrevo a primeira frase. Apenas rabisco “vou escrever um livro”. O resto com o tempo virá.
Os minutos passam, rapidamente se transformam em horas. Olho pela janela, já é noite. Um incómodo silêncio se instalou no ar, nesta casa vazia. De vez em quando, fragmentos de uma frase ecoam na minha mente. São vozes descontroladas, mais do que uma. Contradizem-se mesmo. Todas querem opinar. E se eu escrevesse estas frases soltas que me gritam as vozes da mente? Que resultado teria? E se tentasse completar estas ideias que me vão surgindo do nada? Que fazer com estes gritos e sussurros que me tentam ajudar mas que me estão a deixar completamente louco. Quando regressar á cidade terei uma bela história para contar. É então que começo a escrever um pouco mais.
“Vou escrever um livro. Um livro que fale de amor, de paixão, de dor. De feitos heroicos, de tragédias e risos. Um livro que documente a história de toda a Humanidade, da minha aldeia, da minha comunidade, dos meus amigos, da minha família…”.
A pouco e pouco, as palavras fluem. A caneta desliza velozmente no papel. Viro uma e outra página. Constato com assombro que metade do caderno já se encontra povoado de palavras. Paro um pouco. Não sinto fome nem sede, apenas continuo com esta ânsia de escrever. As vozes pedem mais e mais. Acho que só vão parar quando este meu livro estiver completo.
Acho que bloqueei um pouco. O melhor é ir descansar. Quem sabe dormindo me surgem mais ideias para continuar este meu livro. Por vezes os sonhos são bons conselheiros. Foi em sonhos que muitas das mais belas obras da Humanidade foram reveladas aos seus criadores. Deito-me na cama. A pouco e pouco, os meus olhos vão começando a fechar. A caneta e o caderno repousam também em cima da secretária.
Uma luz forte e intensa ilumina o aposento. Levanto-me de um salto. O coração bate descontrolado. Não sei se estou a sonhar ou acordado. Vejo então uma figura. Um ser humano cujos traços não consigo distinguir. Nada mais do que uma silhueta. Olho mais fixamente para o local de onde vem esta presença. A pessoa pega no meu caderno. Noto que cruza as pernas sentada na minha cadeira. Olhando melhor, trata-se de uma linda mulher. Uma dama com traços delicados. Alguém que viveu noutra época. Um espetro sem dúvida. Com muita atenção e curiosidade, lê com avidez o meu caderno. Um leve sorriso lhe aflora os lábios rosados. Tenho a impressão de a ver acenar afirmativamente com a cabeça. Se ela ao menos me dissesse como acabar a história.
Não sei por quanto tempo dormi. O calor invade o aposento. Seguramente o dia avançou e nem dei conta. Rapidamente saio da cama. O caderno e a caneta repousam no lugar onde os deixei antes de me deitar. Recordo-me do sonho que tive. Esteve aqui alguém e leu o que eu estava a escrever. A imagem foi real de mais para a negligenciar. A confusão que me invade é imensa.
Olho espantado para o relógio. Único objeto que me une ao Mundo neste lugar. Fico lívido. Já passaram cinco dias desde que me aventurei a escrever. Como foi isso possível? As vozes na minha mente parecem ter sossegado? Já não insistem em que eu escreva. O que terá acontecido comigo? A medo, pego no caderno abandonado alguns dias antes. O mesmo que terá sido pegado por alguém do mundo dos sonhos, das sombras ou da luz.
Releio o que escrevi. Pareceu-me a história mais linda do mundo que alguma vez conheci. Mais adiante, algumas páginas depois, a caligrafia mudou. Não reconheci a letra no papel. Era uma caligrafia mais delicada, feminina, carregada de muito amor. Fiquei sem saber o que pensar. Sem dar conta de quando isto aconteceu, algumas lágrimas molharam-me o rosto. Lágrimas de emoção, de comoção. Nunca antes havia chorado ao ler um livro ou uma história. Parece que sentimentos adormecidos despertaram em mim.
Reparo que nem mais uma página vazia tenho no meu caderno. Paro um pouco a leitura mas algo me impele a continuar. Não interessa quanto tempo vou demorar. Outros cinco dias talvez. Estou ávido pelo final desta história escrita a dois.
Olho as horas. Já há muito que o dia se foi. De manhã prometo levar este manuscrito á cidade. Não vou esperar pelo final destes dias de descanso. Algo me impele a entregar o livro já.
Bato á porta de uma pequena editora que alguém na rua me indicou. A porta estava aberta como se já há muito aguardasse a minha chegada. Um senhor já idoso encontrava-se ao balcão e logo me reconheceu sem que antes tivéssemos sido apresentados. Entreguei-lhe o velho caderno manuscrito. Ele deu uma vista rápida. Senti algo se iluminar nele. Não sei descrever como ele ficou ao ler passagens da história. Apenas sorriu e disse que, apesar de ter muitos manuscritos em lista de espera, iria fazer de tudo para publicar o meu livro rapidamente. Perguntei-lhe qual era a pressa. Ele apenas encolheu os ombros.
Alguns dias depois, de volta á rotina da cidade, reparo que toda a gente na rua me olha de um modo estranho. Passo por acaso numa livraria e vejo na montra um livro que não conheço mas que me chama a atenção. Na capa está apenas escrito “Vou Escrever um Livro”. Constato que se trata da minha obra. Peço um exemplar ao vendedor, tentando não denunciar ser eu o autor da obra. Sorrindo ele diz-me que este é o último exemplar que tem. Na cidade quase todos os livros estão esgotados. Nas rádios, televisões e jornais, não se fala de outra coisa. A comunidade literária tece rasgados elogios á obra. Está entre os livros mais vendidos do ano…
Com o exemplar debaixo do braço, sigo para casa. Ainda não estou em mim com o sucesso inesperado que alcancei. Não sei quem me deu a mão para agradecer. Foi talvez um anjo bom. A partir de agora, vou dedicar-me +à escrita. é isso que o meu coração me pede que faça. É esse o instinto que quero seguir. Sinto que encontrei o caminho. Sinto que vou passar o resto da minha vida feliz e em paz.
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