Ora aí está um exemplo de livro que toda a gente deveria ler, sendo ou não portador de deficiência.
De facto, a sociedade está muito mal preparada para lidar connosco e o Mundo está muito longe de não nos ser hostil. Saímos para a rua e cada pequeno pormenor é uma batalha. As pessoas sem nenhuma limitação nem fazem ideia como coisas tão simples podem ser autênticas batalhas. A nossa existência é bastante condicionada em parte pela falta de civismo e de preparação da sociedade. É que as pessoas não pensam que algum dia poderão padecer de deficiência ou de uma enfermidade que as possa privar de um sentido. Este livro vem mostrar aos mortais que não são imunes a adquirir uma deficiência. São muitos os riscos e as pessoas todos os dias se confrontam com eles. Normalmente as coisas correm bem. E quando não correrem? Uma vez, farta de ver a mesma pessoa sempre a rebaixar-me, sabendo que ela era uma má condutora, atirei com raiva: “você anda na estrada…” Com isto eu quis dizer á criatura que ela podia ficar como eu, como outro colega deficiente motor ou pior ainda. Só por ter dois olhos e duas pernas era melhor que nós e podia-nos tratar com a sobranceria que estava a ter? Existem muitas pessoas como esta. Pessoas que não fazem ideia que a deficiência não bate só à porta dos outros
Sinceramente, adoraria conhecer o autor deste livro- pereira De Sousa Júnior. A sua história é um pouco como a minha. Por momentos emocionei-me porque tive a sensação que era ele a contar a minha história por mim. Tenho algumas páginas escritas mas falta-me por vezes a coragem e o ânimo para lhes pegar. Também ele vem da Comunicação social, também ele teve um avô que era cego, no meu caso eu tive uma avó cega. Também ele foi confrontado ainda a trabalhar com a perda gradual da visão e teve de se adaptar dia após dia com essas dificuldades. Acreditem, esta é a parte mais terrível que podemos enfrentar. Por um lado temos de nos inventar a cada dia, por outro nem sabemos como é que foi possível fazermos quase o impossível. Instinto de sobrevivência talvez. Todos os dias enfrentámos a tristeza de nos confrontarmos com a impossibilidade de fazermos algo que nos agradava. Tarefas do quotidiano cada vez são mais morosas. No trabalho, o que normalmente demorava um ou dois minutos, prolonga-se no tempo porque os nossos olhos deixam de distinguir num computador o que quer que seja. O trauma é enorme. O desgaste é tremendo. No meu caso, foram seis meses que passei assim até que uma operação me deixou assim como estou hoje. Deixei-me operar porque tinha a esperança de voltar a trabalhar e hoje sair á rua, especialmente em dias de muito sol é um problema.
Ainda hoje me disseram que eu podia ter continuado a trabalhar. Pois podia mas os últimos seis meses de dez anos que trabalhei estão gravados a ferro quente na minha memória. Nem eu sei onde arranjei forças para trabalhar assim e somente a cegueira quase total me vergou, uma vez que ainda tenho perceção da luz e de cores mais fortes.
Muita gente que não vê trabalha mas poucas se recuperam depois de terem perdido a visão tardiamente. Para além da perda de visão que é um autêntico vazio nas nossas existências, vivemos com o trauma de não podermos fazer as mesmas coisas de antes. Muitas vezes tentamos e nos frustramos por não conseguirmos. Coisas simples levam-nos muitas vezes ás lágrimas. Seja porque entornamos coisas no chão, seja porque demoramos a procurar objetos, seja simplesmente porque não nos conseguimos ver ao espelho como aconteceu comigo há uns tempos. E eu não era daquelas pessoas que passava horas ao espelho. Muitas vezes o facto de não podermos ver mais um amigo, um familiar, uma pessoa que seguimos nas redes sociais nos enche de mágoa. No meu caso, como teria eu espírito para trabalhar com responsabilidade? Se já é tremendamente difícil trabalhar sem ver, mais difícil é ainda trabalhar com este vazio imenso na minha vida.
O meu jogador favorito marca um belo golo? Ponho-me a chorar em vez de o aplaudir. Alguém lá longe publica uma foto nas redes sociais, apenas vejo que traz algo vermelho vestido? Uma tristeza indescritível se apodera de mim. Gostava de ir para a rua correr logo de manhã antes de ir para o trabalho? Agora não posso. Adorava ver Futebol na televisão? Ainda tento mas somente o verde da relva consigo ainda ver. Muitas vezes em plano fechado consigo ver os jogadores mas só se vestirem de vermelho, amarelo ou laranja. Tenho de pedir a outras pessoas para descreverem jogadores que vieram jogar para o nosso campeonato depois de 2019. Alguém consegue viver assim sorrindo e cantando? Claro que não.
Caminhos que conhecia estão todos minados por obras. Aqui em Coimbra sair á rua é uma missão de super-heróis. Ia a pé para todo o lado. De noite ou de dia. Agora mal vou até á praça 8 de maio em dias de sol. Os jogos de sol e sombra simplesmente me descontrolam. Se penso que tenho de sair à rua, fico logo ansiosa e antigamente andar na rua era o meu estado normal porque fechada em ambiente de escritório já eu estava todos os dias. Agora tomara eu não sair e ter as janelas fechadas. Sou como os vampiros. Detesto o sol. Por mim estaria a chover o ano todo.
Tive pois que me reinventar. Pouco resta da minha antiga existência. Uma das poucas coisas que mantive foi a escrita e este meu blog, embora tivesse de adaptar os conteúdos. O que ainda me resta, agarrei com ainda mais vigor. A escrita e a leitura foram duas das coisas que reforcei e que preenchem grande parte da minha vida. São duas coisas que me fazem esquecer tudo o que se passou comigo e tudo o que perdi.
Também incrivelmente realizei dois sonhos. Sendo grande amante de futebol, sentia grande mágoa por não ter a oportunidade de jogar num clube por ter baixa visão. Jogava na rua, passava horas e horas com a bola como companheira e confidente mas só agora tenho a oportunidade de jogar futebol.
Outro sonho que se realizou e que estou a desfrutar foi a oportunidade de fazer rádio. Um sonho pelo qual lutei quase toda a minha vida. Agora está a ser possível. Gosto bastante do que faço e estas atividades dão um colorido diferente á minha vida sem cor.
Outra coisa que me poderá ser útil é o teatro. Estou inserida num projeto mas sempre foi minha intenção fazer alguma coisa nessa área. Mais escrever do que representar. Sempre disse que a escrita iria ser muito importante caso eu deixasse de ver. De facto, por mais que saibamos que a cegueira é inevitável, o dia em que nos confrontamos com ela deixa-nos completamente sem chão. Completamente perdidos. Se acontece com quem sabe que vai cegar, imagine-se o que acontece a alguém que sempre foi saudável e de repente perdeu a visão?
Adquirir uma deficiência pode ser ainda pior do que perder um ente querido. Todos os dias coisas simples nos lembram que já não somos os mesmos.
Por mais idênticas que sejam as histórias de infortúnio, vivemos cada momento de maneira diferente. No caso de mim e do autor deste livro, é incrível a semelhança de sentimentos e sensações que nos assolam. Quem nasceu cego não tem esta noção de perda. Sempre adaptou a sua vida, a sua educação, tudo à sua condição. Quem cega tardiamente lida com a perda do que ficou para trás e a incerteza do que possa vir a acontecer para a frente.
É sempre gratificante saber que não navegamos sozinhos neste mundo que temos de enfrentar e que cada vez nos engole, nos devora, nos ignora, nos ostraciza. As nossas cidades cada vez estão menos acessíveis. A cada passo que damos existe um buraco, um andaime, pessoas paradas a conversar nos passeios como se estivessem no sofá de sua casa. Nem nos ouvindo chegar se arredam. Vão parar ao chão e ainda resmungam. Vão a olhar para telemóveis e nem se arredam…
Os transportes são cada vez menos e menos acessíveis. Em 2007 os autocarros na cidade de Coimbra tinham todos sistema de voz para anunciarem as paragens. Agora só ligam quando algum de nós entra e mesmo assim vai em surdina. Com as pessoas a falarem quase não se ouve. Dizem os motoristas que isto os incomoda. Sem comentários.-..
Podia aqui estar eternamente a enumerar as batalhas que temos de enfrentar no nosso quotidiano. As pessoas não fazem ideia como é viver num Mundo que não nos compreende e nos exclui. Se compreendessem, talvez tivessem a sensibilidade de fazer a sua parte e tornar as nossas vidas mais suportáveis.
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