Monday, February 14, 2011

Calor humano

Dizem que em Londres ou lá onde é existe um hotel onde se pode recorrer ao serviço de aquecedor de camas humano. E um serviço destes em Portugal? Como seria?

Comecei a pensar e, dadas as especificidades dos portugueses, tinha de sair daqui disparate pela certa. Há coisas que se acaso são importadas para a nossa realidade têm obrigatoriamente de dar confusão. Esta seria uma delas.

Vejamos o seguinte: uma unidade hoteleira algures em Lisboa (sim porque estas coisas demoram a chegar a outras localidades que não a capital). O serviço de aquecedor humano não carecia de ser activado pelo cliente. Aqui, como não se queria gastar electricidade, o serviço era inevitável.

O aquecedor humano antes de começar a sua azáfama ficava exposto cerca de uma hora a uma enorme fogueira alimentada a lenha durante uma hora até ficar até não poder mais de tão quente. Depois lá ia ele até à primeira cama que tinha de aquecer. Claro está que o horário de expediente era nocturno. Só muito raramente é que um cliente se deitava durante o dia e isso normalmente acontecia depois de uma viagem longa de avião que um cliente fizesse e houvesse a necessidade de descansar.

Como seria então o quotidiano destes aquecedores humanos cá em Portugal? O nosso humilde espaço percorreu todos os hotéis e encontrou o que procurava. Sentados à fogueira a prepararem-se para começar mais uma noite de trabalho encontravam-se os três aquecedores humanos residentes desta unidade hoteleira da Capital.

Queríamos ouvir as suas histórias, as aventuras, as desventuras e, essencialmente as situações embaraçosas que acontecem ao ritmo da ignorância e incompreensão dos turistas.

Augusto Rodrigues, trinta e seis anos, arranjou este emprego por ser um novo desafio e pela oportunidade única de ter um emprego em que estaria deitado, algo que qualquer português gostaria de ter. Questionado sobre o grau de satisfação em relação à sua insólita profissão, o aquecedor humano declara-se bastante contente, até porque os ordenados e as condições de trabalho ajudam.

Entre amigos, há sempre gracejos e bocas acerca da sua invulgar ocupação. Mas haverá assim tantos momentos embaraçosos? Augusto Rodrigues recorda o momento mais embaraçoso que teve. Estando deitado numa cama, ainda por cima à noite, a tentação de dormir é tão forte que não há maneira de evitar passar pelas brasas. Numa ocasião Augusto adormeceu enquanto aquecia a cama de um hóspede português que chegaria dos Estados Unidos a altas horas da madrugada. Apesar de ter começado a aquecer a cama do senhor por volta da uma da madrugada, o senhor só chegou por volta das quatro da manhã quando era esperado por volta das duas.

Quando o cliente entrou no quarto e viu que a sua cama estava a ser ocupada por um homem que ressonava uns decibéis acima do suportável, desceu as escadas e questionou o recepcionista sobre o número correcto do seu quarto. O recepcionista voltou a confirmar que o número do seu quarto era aquele. O cliente solicitou ao recepcionista que o acompanhasse até ao quinto andar para confirmar com os próprios olhos que o quarto estava a ser ocupado por outro hóspede. Quando entraram no quarto o recepcionista informou o cliente do serviço que tinham naquela unidade hoteleira. O cliente foi embora porque não lhe apetecia deitar nos mesmos lençóis onde outro estava a dormir.

Por causa das esquisitices e manias de alguns hóspedes, António Duarte deita-se por cima da roupa mas já lhe disseram que assim não era bom porque arrefecia facilmente. O inconveniente neste tipo de comportamento é apenas e só o de ter de ir mais vezes para a sala da fogueira.

Paulo Damasceno, um jovem de vinte e um anos, já teve dissabores mais sérios pela sua beleza e juventude. Também ele adormeceu enquanto aquecia uma cama. Por acaso a hóspede era uma brasileira muito fogosa que não se importou de na sua cama já haver companhia. Questionado sobre essa noite, Paulo Damasceno apenas soltou um sorriso malandro.

Por falar em adormecer enquanto se aquece a cama de alguém, alguma vez encheram as almofadas e os lençóis de baba? Nenhum dos entrevistados mencionou este inconveniente lembrado bem a propósito pela nossa equipa de reportagem. As verbas astronómicas que nos pagam para nos lembrarmos de pormenores que escapam ao comum dos mortais não nos permitiriam deixarmos esta questão por abordar.

Nenhum dos três entrevistados se referiu a isso mas as histórias embaraçosas continuaram em catadupa. Augusto Rodrigues recorda-se de ter chegado para aquecer uma cama de uma senhora já de uma certa idade e encontrar a cliente já nua como veio ao Mundo. Ambos corados e embaraçados, não souberam o que fazer ou o que dizer.

Já Paulo Damasceno entrou num quarto de casal onde um homem e uma mulher discutiam de forma muito violenta. No preciso momento em que o aquecedor humano abriu a porta, voou uma jarra que estava em cima da mesa. Paulo Damasceno apenas se teve de desviar uns centímetros para impedir que o objecto lhe acertasse em cheio. Aqui para nós, para que é que eles precisavam da cama aquecida se já estavam a ferver? Estes comentários completamente desnecessários também estão a ser pagos a peso de ouro.

Por falar em casais, em certa ocasião António Duarte foi aquecer um quarto destinado a um casal. Não detectando movimento, o aquecedor humano deitou-se no seu posto de trabalho que era a cama. Da casa de banho, envolta numa toalha, surgiu uma cliente bastante jovem e atraente. Provavelmente ele não a terá ouvido porque ela devia estar a passar creme pelo corpo. Ao contrário de tomar duche, esta tarefa não implica barulho. A menos que a pessoa cante enquanto cuida da beleza corporal.

Ela saiu da casa de banho nua apenas envolta numa toalha e não se apercebeu que alguém se encontrava na cama. Absorto a observar a “paisagem” o aquecedor humano não saiu de onde estava. Só que o companheiro da jovem entrou no quarto e viu a cena. Logo questionou a companheira que, horrorizada, só naquele momento reparou que um estranho dormia na sua cama. O companheiro não acreditou e seguiu-se uma acesa discussão. O aquecedor humano teve de intervir e assumir as culpas. Isso valeu-lhe dois socos na cara. A partir desse dia, sempre que entra num quarto verifica bem se por acaso está alguém na casa de banho ou noutro recanto qualquer do aposento.

Os aquecedores humanos que contactámos referem o carácter sazonal da sua profissão como o principal inconveniente desta actividade. No Verão não é necessário aquecer-se a cama.

A título de curiosidade, houve uma unidade hoteleira que tentou substituir os aquecedores humanos por gatos. Tal ideia não foi por diante porque há imensa gente alérgica a estes animais. Eu cá não me importava. Quantas vezes no inverno não levava a Juju ou o Koguito para aquecerem a cama? Resultava, sem dúvida.

A minha opinião sobre esta temática tão invulgar é clara: eu jamais me deitaria numa cama onde uma pessoa estranha dormiu. Preferia mil vezes esperar uma ou duas horas até conseguir finalmente adormecer como acontece sempre que me deito. Por vezes eu própria aqueço a cama antes de me deitar sentando-me a ler por cima da roupa. Resulta um pouco.

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