Monday, June 18, 2007

Aquele dominglo (texto escrito dias depois da morte de Miklos Fehér)

Manda a tradição quem no último domingo de Janeiro, Vale de Avim acorde ao som de foguetes e de música de gaiteiro. Este ano o gaiteiro era composto por músicos do lugar que andavam de porta em porta num clima de folia, apesar da chuva que teimava em cair.

Era um domingo igual aos outros, a festa pouco me dizia. Passaria essa tarde como todas as tardes de domingo- no quarto a ouvir os relatos de Futebol. Tudo normal! Os jogos terminariam com o cair da noite, sem nada de novo. Apenas o trivial das tardes e noites de domingo: vitórias, empates, derrotas, bolas que não entram por azar, grandes penalidades por assinalar, toques ou lesões mais ou menos graves. Nada que não aconteça a cada fim-de-semana.

A tarde chegava ao fim. Ainda se ouviam os foguetes e as músicas animadas no lugar. Daí a nada iria terminar a romaria. O tempo de chuva e de frio iria obrigar os foliões a recolher aos cafés do lugar para assistir a mais um jogo de Futebol. Um simples jogo de Futebol. Nada mais. Quando a bola começasse a rolar, um coro desafinado de vozes exaltadas iria discutir as incidências desse jogo que se previa que terminasse sem casos que não fossem os típicos das discussões do costume.

Eu estava no meu quarto. Ia ouvir o relato de mais um Guimarães-Benfica. Ao mesmo tempo, lia algumas revistas enquanto o temporal lá fora se tornava cada vez mais forte, mais medonho. Pairava no ar algo estranho. Era impressão minha! Estava apenas ansiosa. Era da ansiedade. Preparava-me para dar um novo rumo à minha vida. Era natural sentir-me assim.

Os minutos passavam. E o Benfica que não marcava! Mais um mau resultado! Voltava à minha leitura, sem nunca tirar os sentidos do que se passava em Guimarães. O repórter dá conta de uma substituição que se adivinha no Benfica. Ia entrar Miklos Fehér. “Já lá devia estar!”- resmunguei eu mais uma vez. Era sempre assim quando o resultado não agradava e José António Camacho teimava em deixar o avançado húngaro esquecido no banco de suplentes. Mal sabia eu que seria a última vez que desejava a entrada de Fehér em campo e que acreditava que ele iria salvar o Benfica, como naquele jogo com os belgas para a Taça UEFA.

O jogo caminhava rapidamente para o final. Ainda ia entrar o Andersson no Benfica. O repórter comentou que era o último jogo que o médio sueco ia fazer com a camisola do Benfica. Ultimo jogo- essas palavras soaram a algo que hoje me custa explicar. De repente larguei a revista que estava a ler. Sentia algo estranho. Algo que me deixou alerta. Era como se alguma catástrofe, algo de muito ruim estivesse para acontecer. Era a ansiedade, eram os nervos, o golo não aparecia. Não ia acontecer nada de mal. Era eu que estava impaciente e receosa da mudança.

Queimavam-se os últimos cartuxos de um jogo que parecia terminar empatado. Mais dos pontos perdidos! A voz estridente do repórter grita, finalmente, o golo encarnado. Ergo as mãos ao ar e grito efusivamente. Até a chuva lá fora parece ter acalmado. “Quem marcou? Foi o Fehér?”- voltava eu ao meu habitual monólogo sempre que ouço Futebol. Afinal foi o Fernando Aguiar, mas o Fehér é que fez o primeiro remate.

Novamente pego na revista e recomeço a ler. Apesar do golo, estava preocupada com algo. Era o medo de encarar uma vida nova? O jogo estava agora nos descontos. Era anunciada a amostragem de um cartão amarelo a Fehér. Um cartão amarelo, nada de extraordinário num jogo de Futebol em que, não haver cartões, já +e um feito raro nos dias de hoje. Poucos segundos mais tarde, o repórter fala, com alguma apreensão e algum embargo na voz, de um jogador do Benfica que cai no relvado. O outro repórter diz que se trata de Miki Fehér e alerta, quase aos gritos, que a situação é grave pois, de onde ele estava deu para ver que o atleta tinha perdido os sentidos.

Seguiram-se relatos de cenas de extrema tristeza. Jogadores e treinadores choravam compulsivamente. Não tinham acabado de perder a Liga dos Campeões, nem tinham acabado de ser despromovidos. Choravam a dor de perderem um companheiro. Uma derrota sempre se recupera na próxima vez, a vida é só uma e perdê-la é algo irreversível. Nem estava a acreditar no que estava a ouvir. Jamais imaginaria acontecer uma coisa dessas. Sei que estas coisas acontecem. Acompanhei as notícias da morte de Marc-Vivien Foe e de outros atletas. Nunca pensei que acontecesse algo aqui e muito menos com um jogador do Benfica.

Continuava incrédula a ouvir o que se passava naquele estádio em Guimarães. Beliscava-me e esfregava os olhos na esperança de que aquilo não passava de um pesadelo. Iria acordar, olhar em redor e verificar que nada se tinha passado. Não! Não estava a dormir. Estava bem acordada e gritava para mim própria: “Não fazem nada? E se ele morre?” Ainda pensava que se tratava de uma queda de tensão arterial ou qualquer coisa que depois iria passar, porém, continuava mais intenso aquele pressentimento de perigo. O jogo terminara ali. Ninguém queria mais saber do jogo. Esqueceu-se o resultado. Havia uma dura batalha contra a morte que se tinha de vencer.

Corri para a sala a acender a televisão. A chuva e o vento faziam lembrar algo que entristecia e, ao mesmo tempo, assustava. Ainda não se falava em morte, apenas numa situação clínica bastante grave. Nas rádios, as pessoas estavam emocionadas. O tom triste, quase de choro, tomava conta das suas vozes. Médicos especialistas em patologias do coração tentavam explicar as razões da tragédia. Que estávamos a testemunhar. Nem eles encontravam explicações. Apenas se mostravam receosos pela vida de Fehér.

Passaram-se quase duas horas desde o momento em que Fehér caiu no relvado frio e molhado de Guimarães. As imagens eram repetidas e comentadas. O sorriso de Fehér que arrumava o cartão no bolso. Os seus olhos brilhantes não davam a entender que, poucos segundos mais tarde, estivesse ali inanimado com toda a gente a chorar à sua volta e milhares de pessoas a aguardar um milagre, a notícia de que afinal tudo não passou de um susto. A notícia chegou. Vinda das trevas, trazida por uma coruja surgida do temporal. A morte venceu a batalha e Fehér deixou-nos para sempre.

Não estava a acreditar! Aquela noite não estava a acontecer. Perguntava-me a mim mesma porque é que a vida tem de ser assim. Porque é que a morte surgiu assim, sem aviso, num recinto desportivo, num local onde se promove a vida saudável e a alegria.

Reflectia. Afinal também sou desportista e receio sempre que me aconteça algo de grave. Custava-me a aceitar a partida de alguém tão jovem, com tantos planos, tão cheio de vida, tão alegre. Lembrei-me da letra de uma canção dos Trovante e aí achei uma explicação possível para esta morte. Dizem esses versos que Deus leva os que mais ama. Também diz o povo que os bons morrem cedo e que os mais chegam aos cem anos. Sertã que Deus chamou Fehér para junto de Si porque o amava?

É a vida! Temos de a aproveitar e vivê-la com tudo o que ela tem de bom. Não adianta haver guerras e conflitos no Desporto ou em qualquer outra actividade. Devemo-nos lembrar que a vida é muito mais importante do que qualquer resultado desportivo.

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