Saturday, November 10, 2012

“No Ver Está A Diferença” (impressões pessoais)



Ver também “Duas pequenas histórias envolvendo deficientes visuais e pessoas aparentemente normais”

Vendo este livro à venda no estabelecimento onde trabalho, logo me apressei a comprá-lo e a lê-lo, apesar das toneladas de livros que tenho para ler.

O nome do seu autor diz-me alguma coisa mas, neste mundo da deficiência visual, conhece-se sempre imensa gente, outros apenas me conhecem a mim devido ao Desporto e de outros simplesmente já não me lembro.

Dou os parabéns a Henrique Portugal por ter abordado a temática da deficiência visual de uma forma leve, mantendo uma atitude pedagógico e dando ao mesmo tempo a conhecer a problemática da deficiência visual a quem não vive nesse mundo.

Esta obra está simplesmente maravilhosa. Não há mais nada a dizer sobre ela. Está muito bem escrita, fácil de ler e de compreender, consegue captar o leitor, arrancar-lhe por vezes umas boas gargalhadas, interessá-lo até nos aspectos da nossa vida, do nosso quotidiano, dos nossos problemas.

Se cada deficiente visual começasse a narrar as suas peripécias quotidianas, teríamos certamente um compêndio enorme de histórias rocambolescas, cómicas, embaraçosas, engraçadas, emocionantes, hilariantes, épicas…basta sair-se para a rua e deparar com um mundo que não está feito à nossa medida. Há quem escreva um livro a narrar os episódios que vão surgindo e há quem como eu tenha um blog que inicialmente foi criado precisamente com o propósito de narrar o meu quotidiano, o que eu vivo, o que eu penso, como eu encarro o que me rodeia…Já aqui tenho narrado algumas das histórias que se passam na rua, especialmente nos autocarros que são uma fonte inesgotável de histórias hilariantes. O texto que coloquei acima é o exemplo mais gritante desses relatos.

As pessoas aqui em Coimbra, vendo um cego num autocarro que desce ou sobe os Combatentes, partem logo do princípio de que ele vai para a ACAPO. Mesmo que seja de noite, Domingo ou feriado. Tem sempre de ir para a ACAPO e ponto final.

Eu agora ando pouco de autocarro porque trabalho perto de onde estou a morar mas apanho o autocarro aos fins-de-semana para ir um pouco até ao Dolce Vita, especialmente. Outras vezes vou mesmo a pé. Depende das horas que são. Já me perguntaram várias vezes se eu queria sair na ACAPO. Respondo que vou para o Dolce Vita, que também sou filha de Deus. Se o comum dos mortais vai espairecer até ao centro comercial, eu também tenho esse direito. As pessoas desconhecem que a ACAPO ao Sábado normalmente está fechada, excepto quando há alguma actividade.

Foram colocadas duas paragens em frente à delegação da ACAPO em Coimbra mas eu raramente saio lá. Só lá saio quando vou com amigos meus na conversa e eles lá saem. É uma questão de não os deixar a falar sozinhos. Não custa nada segui-los. Agora devido aos compromissos profissionais estou muito pouco tempo com eles. Há que aproveitar cada momento. Já nem me lembro da última vez em que coloquei os pés na ACAPO, mesmo dentro das instalações. Talvez lá vá um dia destes quando for o magusto para me divertir um pouco.

Sendo amblíope congénita, ando ainda na rua sem problemas, apesar de ter só um décimo de visão apenas num olho. Enquanto que quem é cego total tem as mesmas necessidades ou praticamente as mesmas, na baixa visão não é bem assim. Talvez se houver mil e um amblíopes, haverá mil e uma formas de os abordar e de atender às suas necessidades. Mesmo ambíopes com a mesma patologia. É uma questão de hábito. Um dos comportamento mais comuns que se têm na presença de um amblíope é ampliarem-lhes as letras do que se lhes dá para ler. No meu caso, como tenho o campo visual muito apertado, não há necessidade de ampliar. Eu consigo ler letra normal, contando que não seja muito pequena, usando apenas auxiliares ópticos. Fomos desaconselhadas a usar documentos ampliados porque tal só nos ia limitar no nosso futuro. Tinham razão. Leio livros e revistas sem problemas e ler para mim é o maior dos prazeres que tenho.

No meu caso, habituei-me a fazer da cor um factor importante da minha vida. Isso talvez tenha a ver com a forma como fui estimulada ainda em tenra idade. As minhas referências na rua têm muito a ver com as cores. Como tenho problemas também com a lateralidade, se me derem indicações “para a esquerda” ou “para a direita” baralham-me um pouco. Se me disserem que eu devo cortar onde vir uma casa branca, uma casa amarela, uma casa com um toldo azul e por aí fora, assim eu já me oriento. Eu também devo baralhar um pouco as pessoas que me pedem indicações, fornecendo-lhas da mesma forma que eu as compreendo. Se acaso eu disser que deve seguir para a esquerda ou para a direita, o mais certo é eu estar-lhes a dar as indicações ao contrário porque a minha noção de esquerda e direita é muito estranha e isso não tem nada a ver com a deficiência visual, tem a ver com o facto mesmo de ser canhota. As pessoas apanham-se com as referências que eu lhes dou e muitas vezes ouço algo como isto:
- “Nem sabia que existia ali uma casa verde.”

Outra coisa que faz um pouco de confusão (tenho amigos cegos com o mesmo problema) é estarmos tão rotinados a fazer um dado percurso e, se vamos com alguém de carro e nos deixa a escassos centímetros até de onde queremos ir ou do local que conhecemos, ficamos baralhados. No meu caso, tenho muitas vezes de voltar para trás e refazer o caminho. Fico algo confusa mesmo. Por essa razão, quando alguém me dá boleia até casa, peço para parar ao pé das paragens do autocarro ou parar onde há um contentor do lixo (mesmo em frente à minha porta). Se param algures ali a meio, eu tenho mesmo de andar para trás até junto das paragens dos autocarros para me orientar.

Nas paragens dos autocarros e afins é que surgem as maiores confusões. As pessoas ficam um pouco confusas quando eu estou na paragem, digo que vem lá um autocarro quando ele ainda vem do outro lado da rua e depois pergunto o número dele. Elas ficam assim com cara sei lá de quê mas isso é fácil de explicar. Os autocarros são amarelos, normalmente, e dá para eu os ver bem mas alguns têm os números pequenos. Há autocarros como o sete, o vinte e nove, o onze e outros com os números grandes e luminosos. Esses dão para ver bem mas um dez, por exemplo, já não dá para ver muito bem. Fui um dia a uma feira de ajudas técnicas no Porto e experimentei uns telescópios que me davam jeito para esse fim. Mandei vir um e é com isso que eu por vezes vejo os números dos autocarros, mas quando está sol e bate nas placas onde estão os números, já tenho de perguntar os números de todos.

Estou na paragem com mais amigos meus. Sô eu é que vejo. Anuncio-lhes que vem um autocarro, por sorte vejo que é um sete, um onze ou um vinte e quatro. As pessoas ficam embasbacadas. Olham-me como se eu fosse de outro planeta. Isto acontece, na minha opinião, porque ainda há quem pense que existem cegos a cem por cento e pessoas com visão a cem por cento. Desconhecem que há pessoas com baixa visão. Basta a pessoa ver alguma coisa para já ver bem.

A história mais cómica que me aconteceu num autocarro? Não sei se já contei isto no meu blog mas penso que na altura o meu blog andava um pouco em baixo. Como o comum dos mortais, o deficiente visual também tem o direito de festejar o Carnaval. Tinha comprado uma máscara mesmo muito feia que vi em Anadia . Como havia a festa de Carnaval na ACAPO, resolvi utilizá-la. Com uns adereços simples que já tinha em casa, faria uma vestimenta para me apresentar a concurso. Tinha tudo, menos um pau. Achava que um pau ficava ali bem. Se fosse o cabo de uma vassoura, melhor ainda. Nessa altura estava desempregada e estava em casa. Fui para Coimbra na véspera da festa, dormiria por lá e festejaria o Carnaval conforme aconteceu. Claro que fui para a ACAPO no autocarro e saí na paragem antes da ACAPO (nem sei se na altura já lá existiam as paragens em frente da delegação). O cabo da vassoira ia na mão, não havia nada onde ele pudesse caber. Dirigi-me para a porta de saída do autocarro. Foi então que ouvi os comentários de duas passageiras uma para a outra:
Passageira 1:- “Ai, faz-me tanta impressão como esta gente consegue andar assim na rua!”
Passageira 2:- “Olhe, estamos quase na Quaresma. É altura de pedir a Deus por eles. Reze!”

Elas pensavam que o pau que trazia era uma bengala branca. Tenho duas até mas só as uso quando vou para fora e quando não conheço os sítios. Em Coimbra não é necessário. Resumindo e concluindo, estive quase todo o dia a rir daquele episódio.

No trabalho, na escola e noutras situações, eu noto que as pessoas reagem de duas maneiras. A mais usada é a de pura e simplesmente nos cortarem as bases à partida. Infelizmente foi assim que se gorou o meu grande sonho de fazer rádio. Mais frustrada me sentia quando chegava lá qualquer pessoa e, ao fim de dois ou três dias, já trabalhava lá dentro no estúdio. Eu ficava ali a empatar à espera de uma oportunidade que nunca surgia. Mais tarde, quando essa oportunidade surgiu, o Destino impediu pura e simplesmente que eu prosseguisse. Estava a ter sucesso. Tinham-me dado a tão desejada oportunidade, estava feliz, apesar da época conturbada que vivia com o agravar do glaucoma. Foi esse agravar da doença que me empurrou dali para fora. Ainda hoje sinto tristeza quando me lembro de me terem implorado ali que ficasse mas não podia fazer nada. Tinha de me ir embora porque adivinhei de antemão o calvário que se seguiu com as operações aos olhos e tudo o que a elas estava associado.

Estive a fazer o estágio do meu curso numa rádio onde, para mal dos meus pecados, estava uma senhora que tem um certo rancor a deficientes, sejam eles físicos ou mentais. Eu via isso porque na altura também trabalhava lá um senhor deficiente motor e ela simplesmente o tratava igual a lixo. No início até tive ali algumas oportunidades mas ela terá começado a ver que eu era melhor do que ela e resolveu cortar-me as pernas antes que eu fosse uma ameaça. Começou também a tratar-me quase como tratava o colega. Estava mortinha por me vir dali embora e nunca mais lhe olhar para a cara. Certa tarde, como ela me proibiu de ir lá para dentro do estúdio, fiquei cá fora à entrada. Não tendo o que fazer, observava o andamento dela a gravar um programa que iria para o ar de madrugada. Uma hora para gravar meia dúzia de takes!!!! Vi ali colegas a gravarem-nos em cinco minutos. Depois ainda praguejava contra o computador. Um belo de um espectáculo! Um espectáculo mesmo triste! Até me estava a meter impressão. Para essa criatura, o computador era um bicho complicado mesmo. A Delegação da ACAPO de Águeda teve conhecimento de que essa desprezível personagem apanhou lá para divulgação um folheto com actividades da delegação, rasgou-o em mil pedacinhos e colocou no lixo. Eu ainda perguntei aos meus colegas se lhe queriam fazer uma espera à porta da rádio para ajustar contas. Eu ainda sabia o caminho para lá. Era por de mais humilhante para uma pessoa assim comer uma sova de meia dúzia de cegos. Isso é que era!

Depois mudei de ramo profissional e senti que, ao simplesmente fazer bem o meu trabalho, estava a frustrar as expectativas niveladas por baixo que tinham a meu respeito pela deficiência. Ao verem que eu executava as tarefas tão bem como elas, viam em mim talvez uma ameaça. Depois, qualquer errinho, qualquer inaptidão para fazer outras coisas (cortar, por exemplo) era o pretexto para exprimirem os seus sentimentos.

Eu até compreendo tais sentimentos e tais atitudes. Deve ser frustrante ver uma pessoa com uma deficiência fazer as coisas tão bem ou melhor do que elas. No caso da senhora da rádio, eu era muito melhor do que ela. Seguramente. Demoraria mais de cinco minutos a gravar um take mas não estava ali uma eternidade como ela. Das duas uma, ou não nos deixam trabalhar à partida, ou deixam-nos trabalhar e depois começam a ficar melindradas por gorarmos e desmistificarmos os seus preconceitos e essa frustração acaba por ser despejada contra nós.

Hoje por acaso trabalho num local sossegado onde ninguém me observa a trabalhar e não ficam ali pasmados a olhar para mim como acontecia dantes. Como isso era horrível! Trabalho à minha maneira, ao meu ritmo e…consigo competir com as minhas colegas que desempenham as mesmas funções que eu. Foi-me dada essa oportunidade, tive de me adaptar, não foi fácil nos primeiros tempos mas, depois de ter tudo ao meu jeito, faço sempre o meu melhor e tenho tido sucesso. Como trabalho à distância e não vejo as pessoas com quem trabalho, nem elas a mim, ainda há muita gente que desconhece que eu tenho apenas um décimo de visão num olho. Outras, quando há a oportunidade de estarem comigo frente a frente, ficam simplesmente embasbacadas. Pela minha parte só tenho de sentir orgulho e me sentir feliz por não se notar a diferença entre o meu trabalho e o de outra colega sem problemas. Isto é sinal de que todos os meus sacrifícios não estão a ser em vão e é um impulso para eu continuar.

E assim é a vida de cada um de nós que nasceu diferente ou a vida cavou as diferenças. Às pessoas que ficam impressionadas e questionam como nós vivemos, sempre digo que vivemos como toda a gente, simplesmente vivemos naquilo a que eu chamo o mundo-cão das deficiências, o mundo tão incompreendido e tão desvalorizado neste nosso Portugal, o mundo que está longe de ser feto à nossa medida, o mundo onde todos os dias temos de lutar pela sobrevivência.







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