Sunday, June 27, 2021

Descontrolo

 

As lágrimas enevoavam-lhe a visão e os pensamentos. Eva olhava para um rosto maltratado e desfocado através do espelho da casa de banho que não reconhecia ser o seu.

 

Todas as células do seu corpo estavam em brasa. Tudo ardia, tudo queimava. Apesar disso, a dor que sentia no seu íntimo era muito maior. Gritava que era preciso agir, que era preciso acabar com este inferno que já durava há mais de dez anos.

 

As lágrimas caíam em cascata por entre as manchas roxas deixadas por mais um episódio de agressão sem motivo aparente. Mais um ferimento que teria de justificar no dia seguinte a quem encontrasse na rua e lhe perguntasse o que fez à cara. Já não sabia o que dizer e não podia dizer a verdade. Por vergonha, por orgulho próprio. Houve ocasiões em que pensou ganhar coragem para contar a alguém mas a noite vinha e com ela mais agressões, insultos, calúnias, pressões psicológicas. Para Raul nada estava bem. Ultimamente tudo estava mal mesmo.

 

Faltavam as forças a Eva para lutar. Para seguir em frente. Por que não o largava simplesmente e partia para longe? Para um lugar onde ele não pudesse ir atrás dela? Quem sabe para um outro país?

 

As coisas haviam piorado nos últimos cinco anos. Raul chegava cada vez mais tarde a casa. Isso não era um alívio para Eva, antes pelo contrário. Na grande maioria das vezes, chegava embriagado e a cheirar a perfume vagabundo de alguma amante ou prostituta. Eva morria de medo de contrair alguma doença venérea. Evitava contacto mais íntimo mas isso não lhe valia de nada. Raul tomava-a violentamente e ela não tinha como reagir, tal era a forma como ele a manietava.

 

Refletia Eva na sua vida. Na situação a que se deixou chegar. Devia ter agido aos primeiros sinais de violência de Raul que inicialmente era carinhoso e afável. Foi depois de uma festa de amigos que o primeiro sinal de descontrolo de Raul surgiu. Não estando em condições de conduzir de volta a casa, Raul pediu á mulher que conduzisse. Um semáforo vermelho fez com que estivessem parados. Considerando a demora demasiado longa, Raul agarrou o braço da mulher com violência e pediu rispidamente que arrancasse. Quando ela disse que o semáforo estava vermelho e tinham de esperar, ele levantou a voz e sem justificação, aplicou um estalo na cara da mulher.

 

A partir daí, Eva sofreu principalmente violência psicológica. Nada do que fazia estava certo para Raul. Dizia constantemente que ela não valia nada, que ela ainda tinha amigos e um trabalho porque era casada com ele. Que os seus amigos tinham sorte com as mulheres com quem casaram, ao passo que ele havia casado com uma inútil que já nem o amava mais.

 

Eva saiu da casa de banho. Enxugou as lágrimas a custo e foi-se deitar. Raul já ressonava do outro lado da cama. Sem fazer barulho, ela ocupou o seu exíguo lugar no leito de casal que já não existia. Somente duas pessoas ocupavam maquinalmente o seu lugar numa cama que raras vezes fora um leito de amor.

 

Sabia que não iria dormir. As dores excruciantes no corpo incomodavam mas os pensamentos que agora lhe surgiam simplesmente a apavoravam. Todos lhe gritavam que urgia fazer alguma coisa. Havia que agir rapidamente. Eram vozes insistentes que lhe gritavam que não podia mais ficar parada á espera que um dia, quem sabe, o marido a matasse, tal como acontecia com outras mulheres que povoavam noticiários das televisões.

 

No dia seguinte, cansada e dorida, Eva foi trabalhar mas a mente vagueava por pensamentos sombrios. Ela pensava no que fazer. Como se livrar do inferno que era o seu marido, o seu casamento, a sua vida. Dali a nada, era hora de ir para casa. O que para alguns colegas era o conforto do lar, para Eva era o lugar menos seguro para onde pudesse ir. Isso não estava certo. Ninguém podia viver assim.

 

Foi na viagem de metro de regresso a casa que uma ideia sinistra tomou conta do espírito de Eva. Teria de matar para não morrer. Talvez lhe faltasse a coragem mas a voz insistia que era o que tinha de ser feito. Nem que ela própria tivesse de morrer logo a seguir, fustigada pelo remorso de ter tirado uma vida. Mesmo que fosse a do monstro em que se transformou o seu marido.

 

Eva então colocou o seu plano em marcha. Ainda seria generosa. Não infligiria sofrimento a quem tanto a fez sofrer. Não era nenhuma assassina sanguinária, não era nenhuma psicopata. Era uma mulher sensível e essa sensibilidade fez muitas vezes com que não ripostasse perante a crueldade de Raul.

 

Não passaria desta noite. Tudo estaria acabado. Algo lhe dizia que tinha mesmo de ser assim. Eva foi ao supermercado e comprou uma nova garrafa de whisky. Tinha reparado que a outra estava quase vazia e Raul adorava beber um bom copo de Whisky enquanto assistia a um bom filme. Havia lá em casa potentes comprimidos para dormir. A ideia era misturá-los na bebida. Duas embalagens pelo menos tinha visto no armário da casa de banho. Eram de Raul mas ele deixou de os tomar, alegando que não era nenhum doente mental. Para dormir a bebida funcionava melhor do que os medicamentos.

 

Enquanto fazia um jantar mais elaborado que de costume, aquele que podia ser o último, Eva abriu a garrafa e atirou lá para dentro os pequenos comprimidos que cabiam perfeitamente no fino gargalo da garrafa. Ela ficou a vê-los dissolver através do líquido dourado. Ela mesmo iria servir a bebida ao seu marido, como por vezes acontecia nas noites em que ele não lhe batia.

 

Por sorte Raul chegou cedo a casa. Havia um jogo de Futebol importante e ele queria assistir no conforto do lar. Vendo o jantar pronto a tempo e horas, não deixou de sorrir. Tudo lhe ia correr bem, jantaria a tempo do jogo e veria o seu filme antes de ir para a cama. Era este o seu ritual de anos.

 

Terminado o jogo, Raul sintonizou a televisão no canal pago que subscrevia para ver bom cinema em casa. Como Eva calculou, ele pediu que lhe trouxesse uma bebida. Os braços de Eva tremiam mas agora não era hora de vacilar. A voz interior incitava-a a seguir em frente com o seu plano.

 

Disfarçando para que Raul não notasse nada estranho, Eva pousou distraidamente o copo em cima da mesa, afastando-se graciosamente. Agora era mesmo tarde de mais para recuar. Era só esperar que a bebida adulterada ditasse a sua sentença. Ela afastou-se do local e tentou pensar em outra coisa. O plano seguinte era ligar para as autoridades alegando que o marido estava inanimado no sofá enquanto assistia ao filme. Ela diria que fora mais uma crise cardíaca. Já há muito que o marido era seguido em Cardiologia e o cenário de morte súbita era provável. Talvez dispensassem a autópsia e ninguém descobriria que fora ela a lhe tirar a vida.

 

Algum tempo se passou. A televisão esquecida emitia os sons de uma perseguição policial a que ninguém naquela sala podia já assistir. Raul jazia placidamente no sofá. Olhos menos atentos diriam que estava a dormir mas Eva sabia que a vida já o tinha abandonado. Era hora de ligar para os bombeiros a contar que tinha achado o marido inconsciente no sofá. Antes havia que lavar o copo.

 

Uma onda de remorso apoderou-se do espírito de Eva como uma cidade tomada á força por um inimigo. Ela jamais viveria em paz com o que fez. Como viveria o resto da sua vida com o peso de uma morte para carregar? Num impulso, tomou tremulamente a garrafa com o que restava da bebida fatal e bebeu-a de um só trago.

 

Uma paz interior se foi apoderando do espírito de Eva. Sabia que ia morrer dali a nada mas sentia um conforto estranho e bom. Uma dormência que, a pouco e pouco, lhe abafava as dores do corpo e da alma. A inconsciência e o torpor envolviam o seu corpo. Deixou-se escorregar para o chão que a acolheu pacificamente. Ao longe, bem distante na réstia de consciência, Eva ouvia ao longe sirenes de bombeiros. Quando chegassem, tudo estava acabado.

 

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