Monday, December 21, 2020

Demónio de olhos vermelhos

 

Dizem que a noite destila a sua magia. É de noite que vamos dormir. É durante o sono que viajamos através dos sonhos e é através destes que dizem que os espíritos nos visitam. Através da porta sombria do subconsciente que se abre nós viajamos para locais alegres e coloridos ou para lugares mais tenebrosos.

 

Foi o intervalo entre a vigília e o subconsciente que uma noite o demónio de olhos vermelhos usou para se apoderar de um indefeso espírito que nem sequer se estava a lembrar que as forças do mal existiam. Tão despreocupadamente levava a vida. Afinal de contas, ser jovem tem desses inconvenientes. Por vezes não se pensa. Os velhos, esses, estão sempre alerta. Preocupados com tudo. Esses o demónio de olhos vermelhos deixa em paz.

 

Viajemos, pois, até ao mundo do demónio de olhos vermelhos. Durante o dia, ele acaba de estacionar o seu vistoso automóvel desportivo de alta cilindrada junto a uma superfície comercial. Ele transformou-se num atraente jovem. Algumas raparigas que por ali passaram não deixaram de reparar nele. Todo vestido de preto, com roupas de marca, cheirando ao perfume da moda, ele aguardava á porta enquanto fumava um cigarro. Nada de olhos vermelhos. Pelo contrário, os seus olhos agora eram verdes, olhos de fazer suspirar qualquer miúda. Ele podia-se divertir com alguma dessas adolescentes que o olhavam, mas ele já tinha escolhido a sua vítima.

 

O carro da vítima do demónio de olhos vermelhos estava a escassos cem metros do vistoso bólide do demónio. Carregado de sacos de compras, o jovem que o demónio marcou abriu a mala do carro e atirou para lá com os sacos de uma forma desajeitada. Destes é que o Demónio gostava!

 

Os olhares de ambos os jovens se cruzaram por breves momentos. Do rádio do carro do demónio saiu uma música medonha. Parado no estacionamento, o jovem sentiu um arrepio antes de se meter no seu próprio veículo e ligar o rádio com a sua música bem mais agradável.

 

Seguindo na estrada no curto trajeto para casa, o jovem pensou no carro que havia visto no estacionamento. Sonhava ter um igual. Quem sabe um dia…

 

Estava a anoitecer. Um estranho cansaço se apoderou do nosso jovem. Começava a sentir uma ligeira dor de cabeça. O dia também havia sido bastante exigente. Tencionava comer alguma coisa leve. Apercebeu-se que não tinha grande vontade de comer um jantar mais elaborado. Iria dormir cedo. Como sempre, estaria a pé antes das sete da manhã.

 

Que atire a primeira pedra quem nunca foi sacudido a meio de uma noite fria por um terrível pesadelo. Que ninguém diga que nunca padeceu de pesadelos! Mesmo quem se gabe de se deitar por volta das dez da noite e só acorde quando o despertador toca. Era o que acontecia com este jovem até esta noite.

 

No seu sonho ele percorria um trilho sem casas de ambos os lados. Por mais que ele olhasse, nem uma luz se via nas redondezas. De início, até lhe estava a saber bem aquela inusitada viagem noturna e solitária. Como ninguém o ouvia, ele começou a trautear uma canção enquanto caminhava.

 

Sem aviso prévio, tudo mudou. O ar tornou-se mais frio. Ele teve de apertar até cima o fecho do blusão. Continuou a caminhar, mas não tão à vontade como há escassos momentos atrás.

 

Pareceu-lhe ver duas luzes. Pareciam os faróis da parte traseira de um veículo, mas nenhum rugido de motor foi ouvido. Provavelmente o carro estaria parado. Quando ele se aproximou um pouco mais de onde vinha a luz, reparou que não era um carro que ali estava. Era uma figura negra e tenebrosa de olhos vermelhos. Cheirava horrivelmente mal e estendia-lhe a mão.

 

O rapaz acordou ofegante. A sua testa estava lavada em suor. Sentia-se incomodado. Já não se lembrava da última vez que tivera um pesadelo. Levantou-se. Estava tudo sossegado. Ainda faltavam duas horas para sair de casa. Não iria voltar a dormir. Só tinha em mente a imagem daqueles olhos sinistros.

 

Ao longo do dia, uma angústia apoderava-se dele. Quem com ele lidava todos os dias achava-o distante. Ele que era extrovertido e sociável. Falavam com ele, mas ele tinha claramente a cabeça noutro lugar. Sentia-se cansado. Estranho.

 

Deu por si a sentir medo de adormecer, apesar do estranho torpor que o invadia. Eram sete da tarde e ele morria de cansaço. Podia ir para a cama sem sequer jantar. Quase não aguentava os olhos abertos. Tinha a impressão de ter sido sedado com calmantes potentes. Deitou-se por cima das cobertas, apesar do frio e adormeceu imediatamente.

 

No sonho, ele encontrava-se no seu quarto, tal como na realidade acontecia. Tudo era incrivelmente real. Mesmo a disposição dos objetos. Podia até ver o seu telemóvel em cima da mesa conforme ele o deixou.

 

No seu sonho, ele levantou-se para fechar a janela do quarto. Estava muito frio ali dentro. Impossível estar tudo fechado. Chegando perto da janela, reparou que, de facto, não havia nada aberto por onde entrar ou sair ar frio. Era estranho.

 

Quando se virou na direção contrária à janela, ficou petrificado. Sentada na sua cadeira estava uma enorme sombra negra e fria. Instintivamente ele recuou, mas a figura levantou-se. Respirava pesadamente. Um som tenebroso. Não tinha como fugir. Para piorar ainda mais as coisas, a figura arrotou, um cheiro putrefacto inundou o ar. Ao fim de escassos segundos, já os seus olhos vermelhos cortavam a escuridão.

 

Afogueado em suor, com o coração acelerado e com uma terrível dor de cabeça, o jovem a quem o demónio marcou levantou-se.

 

Tinha a roupa colada ao corpo. Sentia-se pessimamente. Estava sem dúvida para ficar doente. De certeza que estava com febre. Tremia convulsivamente e sentia-se terrivelmente mal. A febre talvez fosse a explicação para o terrível sonho que tinha tido. Já era a segunda vez que sonhava com olhos vermelhos.

 

Caiu de novo para cima da cama e nem um minuto se manteve acordado, apesar de não se estar a sentir bem.

 

Pior ficou quando voltou a sonhar que estava no seu quarto. Sonhou que tinha acordado bastante doente. Virando-se na cama, deu com uma figura negra e fria que dormia a seu lado. Imediatamente deu um salto. Dois olhos vermelhos como duas brasas se abriram. Desta vez eram mais brilhantes e sinistros. A figura investiu sobre ele e fez com que se deitasse de novo. O seu hálito parecia saído das fossas do inferno.

 

Acordou completamente esgotado. Teve tempo de cambalear até à casa de banho onde vomitou convulsivamente. Nem isso o aliviou. Pelo contrário. Sentia-se cada vez pior. Tinha de ir trabalhar. Nem que se tivesse de arrastar até lá. Os terríveis pesadelos eram resultado da doença. Provavelmente apanhou alguma virose. Mal sabia ele que era precisamente o contrário que estava a acontecer.

 

Tentou levantar-se, mas o corpo não lhe obedecia. Estava muito cansado, muito doente. Como iria trabalhar nesse dia»? A solução era ligar a dizer que não ia trabalhar. Que não se estava a sentir bem. Como o tinham estranhado no dia anterior, encontrariam na doença uma explicação para o seu comportamento mais taciturno.

 

O Sol brilhava alto no Céu. Sentia-o a invadir as janelas fechadas do seu apartamento. Encolhido debaixo dos cobertores, ele tremia de frio. Todo o corpo lhe doía. Esperou que o enjoo passasse também. Se dali a umas horas não se sentisse melhor, teria de sair para ir ao médico. Para se animar um pouco, ligou a televisão, mas depressa desistiu. Não sabia como estar ou o que fazer. Desolado, começou a chorar baixinho. Não só sentia dores e mal-estar, como alguma coisa o incomodava.

 

Entretanto, no andar de baixo do apartamento onde se achava prostrado na cama o jovem que o demónio de olhos vermelhos marcou, a velha solitária via televisão. As pessoas evitavam aproximar-se dela. Tinha fama de bruxa. Fora uma mulher desprovida de beleza que optou por viver uma vida em total solidão. Não eram só boatos. Ela de facto tinha algum poder extrassensorial. Por exemplo, ela estava a captar energias muito negativas ao cimo das escadas. Alguma coisa bem tenebrosa tinha ali passado recentemente. Ficou de verificar. Não estava a achar aquilo nada bom.

 

Depois de ter arrumado a cozinha, ela foi ver um pouco de televisão. Contrariamente ao que era costume, ela adormeceu. Sonhou com uma cama onde jazia alguém. Na outra extremidade do quarto, uma sombra medonha investia sobre o leito. Era uma coisa muito maligna. De vez em quando, chispava umas luzes vermelhas como fornalhas. Ela decidiu tomar providências. Agilmente, colocou-se de pé e subiu as escadas com uma rapidez impressionante para alguém da sua idade. Tinha de fazer alguma coisa. Qualquer segundo perdido significava não poder salvar aquela alma inocente.

 

A porta estava fechada. Ela também não previa que estivesse aberta. Não era problema, ela ia desdobrar-se e lutar com o que quer que encontrasse. O corpo físico ficava á entrada da porta. Somente o seu espírito penetrava a sólida porta de madeira.

 

Inspirando longamente, ela concentrou-se e entrou na casa. O que se deparou foi exatamente o que vira. O demónio de olhos vermelhos sugava a alma do pobre rapaz que já nem reagia. Do outro canto do quarto, começou a rezar as orações de espantar demónios como aquele. Um grito medonho saiu da boca da criatura de olhos vermelhos. Uma restolhada de vidros partidos se fez ouvir depois. Ficaram todos do lado de fora, sinal que a criatura maligna havia saído pela janela.

 

Erguendo-se com esforço da cama, com ar visivelmente abatido, o jovem olhou atónito para o vidro partido da janela do seu quarto. Apesar da confusão, achou impossível os vidros terem sido partidos do lado de dentro da janela. Ele nem se havia mexido dali. A menos que não se tivesse lembrado. Mares turbulentos povoaram o seu espírito ao longo daquilo que lhe pareceu uma eternidade.

 

Já se sentia um pouco melhor, mas ainda não tinha condições de se levantar da cama. Fechou novamente os olhos e dormiu um sono sem sonhos.

 

Pela estrada, ao volante do seu vistoso veículo, o demónio de olhos vermelhos praguejava contra aquele espírito que o derrotou. Se não tivesse saído imediatamente daquele apartamento, seria o seu fim.

 

Preparava-se agora para seguir nova viagem. Quem sabe tivesse mais sorte desta vez.

 

Pancadas surdas na porta de madeira fizeram acordar o jovem. Ainda vestido com a roupa com que se tinha deitado no dia anterior, arrastou-se até á porta. A velha solitária perguntou se podia entrar. Trazia uma tigela fumegante de sopa. Foi nessa altura que o jovem percebeu que estava esfomeado. Quase se tinha recuperado do que quer que tivesse tido. Nunca soube que o demónio de olhos vermelhos se tentou apoderar dele e, se não fosse a vizinha de baixo, teria conseguido os seus intentos.

 

Ficaram ali a conversar e nem por uma vez a presença do demónio de olhos vermelhos foi mencionada. Tudo não passaria de uma lembrança, de um delírio, de um triste pesadelo.

        

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