Friday, December 28, 2012

A casa das gotas

A vida na cidade estava a deixar António cansado, exausto, sem alegria de viver. Estávamos em Junho e já se pensava nas férias.

António e Amélia já haviam viajado bastante, conhecido tudo o que era destino exótico, pisado os maiores paraísos da terra…Agora havia que ficar por cá. Aqui em Portugal também se passariam uns dias de férias bem agradáveis.

Depois de mais um esgotante dia de trabalho, António foi consultar a Internet para ler alguma correspondência e para descontrair um pouco. Num dos mails que havia recebido, havia a proposta de uns dias passados no campo em regime de turismo rural.

António ponderou essa ideia. Falou sobre ela a Amélia e logo ali ficou decidido que, dali a cinco semanas, iriam partir para o campo onde alugariam uma casa para experimentarem pela primeira vez o turismo rural.

O grande dia da partida fora programado com bastante cuidado. O casal estava ansioso por respirar o ar puro do campo e por passar duas semanas no mais completo sossego, sem barulho do trânsito e sem aquele compromisso de se levantar cedo para ir trabalhar.

O carro arrancou de Lisboa por volta das seis da manhã. O casal levava a sua gata persa e o seu cão- um belo labrador preto que tinha o nome de Joe. O destino era o interior de Portugal onde os aguardava um agente imobiliário que lhes iria mostrar uma casa onde habitariam durante as suas férias.

À medida que o carro se ia afastando das zonas habitadas e ia embrenhando pela auto-estrada, Amélia ia sentindo uma estranha melancolia. Era como se algo estivesse para acontecer. Algo de tenebroso. Algo lhe dizia que aquelas férias iriam ser tudo, menos divertidas e reconfortantes. Guardou tal sentimento só para si. O seu marido estava entusiasmadíssimo e ia trauteando as músicas que estavam a passar na rádio, se bem que, á medida que rumavam para interior, o rádio ia ganhando cada vez mais interferências.

Eram nove horas da manhã. O noticiário abriu com a informação de última hora de um grave acidente ali perto. Um acidente terrível que envolveu duas viaturas ligeiras e um camião que as esmagou antes de embater num poste e explodir por completo. O cenário era caótico, segundo afirmava um bombeiro que acorreu ao local. Havia onze vítimas mortais confirmadas. Todas as que seguiam nas três viaturas. Amélia sentiu uma arrepio que a fez estremecer e uma súbita angústia apoderou-se de todo o seu ser.

Ainda estavam longe do destino. Amélia sentia-se cansada e não resistiu ao sono doce que a invadia tão lentamente, que ela pôde contar os segundos antes de perder a consciência. Fora um sono de apenas alguns minutos, mas o suficiente para a fazer acordar sobressaltada e com a sensação estranha de que algo de desagradável iria acontecer na casa para onde estavam a ir.

Sonhou que estava uma noite escura e pesada. Algo no ambiente era medonho mas não havia explicação para se sentir tal pavor. Amélia percorria um amplo corredor de uma casa antiga transportando uma caixa de madeira que lhe pesava como chumbo. À medida que se aproximava do seu destino, a caixa pesava cada vez mais e o medo tolhia-lhe os movimentos por completo. Acordou quando estava a abrir uma porta, talvez a porta da divisão para onde seria para levar a caixa. No sonho não viu nada que a pudesse assustar mas estava apavorada e sentiu-se aliviada quando acordou no banco do passageiro do carro.

António conduzia o automóvel. Estavam a subir. O ar ia ficando mais rarefeito. A temperatura estava a descer gradualmente à medida que a altitude aumentava. Amélia respirava com dificuldade. Aquele medo inexplicável teimava em não a abandonar.

A estrada deu lugar a um caminho de terra batida. Eram cerca de dois quilómetros que distavam da casa antiga à estrada. Que bom que seria passear ali e respirar ar puro! Amélia não estava muito entusiasmada com essas perspectivas. Ela, que muito tinha sonhado com férias passadas na tranquilidade do campo.

A casa lá estava. Enorme, sombria, sem cor. Quase parecia uma casa fantasma. Era uma casa fantasma. O Senhor Porfírio esperava-os para se instalarem. Ajudou-os a transportar as malas para dentro e desejou-lhes uma boa estadia.

Ali estavam os dois sozinhos, esquecidos do Mundo, entregues somente a si próprios. A sensação de liberdade colocava no coração de António um laivo de alegria. Enquanto isso, Amélia experimentava uma angústia sem explicação, vinda não se sabe de onde. Para se distrair, começou a arrumar os pertences de ambos nos locais onde ficariam durante as férias.

Depois de terem almoçado uma refeição rápida, resolveram fazer juntos uma visita à casa. Era enorme. Decidiram-se por ficar apenas pelo andar de baixo que iriam ocupar. Todas as divisões eram antigas e amplas. Um facto intrigante perturbou Amélia: as divisões tinham pouca luz natural e as paredes estavam escuras de anos e anos expostas a humidade.

Quadros e outras peças de arte ornamentavam aquelas paredes. Estavam pesadas. Carregadas até não poder mais de quadros, tapeçarias desbotadas, prateleiras com loiça e esculturas. O odor a humidade e bolor também estava a incomodar Amélia. António olhava para tudo com um entusiasmo infantil.

Não havia trazido televisão, rádio ou computador. Seria um autêntico retiro para recarregar baterias. Apenas os livros tinham vindo. O casal foi para o quarto que escolheram e adormeceram. Ambos estavam cansados da viagem. A gata deitou-se enroscada junto à almofada de Amélia e o cão escolheu um velho tapete junto à cama para também descansar um pouco.

Nas escassas duas horas em que esteve a dormir, Amélia sonhou com uma noite gelada e escura. Uma noite triste e com algo de sinistro no ar. O sonho enchia-a de angústia e de um estranho terror que não conseguia explicar de onde vinha. Apenas percorria o andar de cima da casa. Ali estava um corredor vazio e nada mais. Amélia acordou arrepiada sem saber o que a assustou.

A noite caiu anormalmente gelada para a época do ano. Era estranho. Apesar de as noites serem frescas ali, não deveriam ser tão gélidas como aquela. Estava tanto frio ou mais que em Dezembro. A fogueira foi acesa, dando um ar mais acolhedor à sala. Estava a saber bem estar ali mas havia algo errado que ninguém conseguia explicar.

A fogueira crepitava. Amélia e António estavam em silêncio. Algures, lá ao longe, ouvia-se qualquer coisa. Era um gotejar constante, como se uma torneira estivesse mal fechada e pingasse. Ignoraram os estranhos sons enquanto liam em silêncio.

Era já madrugada quando António e Amélia se foram deitar. Apesar de a fogueira os ter aquecido suficientemente, ao passarem pelos longos corredores da casa, o frio era cortante. Estava uma noite fria, escura e triste. Não havia lua nem estrelas.

O gotejar sobrepunha-se no silêncio da noite. Não havia quem dormisse com aquele som incomodativo. António levantou-se e foi verificar se todas as torneiras estavam fechadas. No andar de baixo tudo estava em ordem e não havia água a pingar fosse de onde fosse. O andar de cima há muito que não era usado. Servia apenas para arrumações.

O gotejar tornou-se mais sinistro. Amélia estava a ficar assustada, apesar de pensar que estava a cair no ridículo de ter tanto medo de um som que de estranho nada tinha.

António regressou e anunciou que todas as torneiras estavam fechadas e que havia fechado também as torneiras de segurança numa tentativa de fazer parar o gotejar constante.

Deitarem-se novamente era inútil. Não conseguiriam dormir. Amélia ficava mais nervosa e mais assustada. António também estava intrigado. Se todas as torneiras estavam fechadas, não estava a chover e o andar de cima estava desabitado, de onde provinha aquela água?

O andar de cima. Parecia ser daí que vinha o som mas não havia lá ninguém. António pensou em ir lá ver o que se passava mas Amélia implorou-lhe para não ir, pois tinha medo de ali ficar sozinha no escuro. O cão emitiu um uivo triste e sinistro. Era como se reclamasse a união de todos ali. Que ninguém se afastasse.

Resolveram ir os dois, depois de muito discutir o assunto. Pegaram em duas lanternas e subiram a velha escada de madeira que rangia a cada passo que davam.

O andar de cima estava deserto. Era composto por um enorme e escuro corredor. De um lado e de outro ficavam inúmeras portas. Todas estavam fechadas. O que se esconderia por detrás delas?

O gotejar tornava-se cada vez mais audível e cada vez mais sinistro à medida que se aproximavam do fundo do corredor. Antes de chegarem ao fundo, verificaram que o chão estava molhado e que um cheiro desagradável inundava o ar. António baixou a lanterna até esta incidir nos seus pés. O que viu deixou-o horrorizado. Havia sangue no chão. De onde vinha?

A lanterna agora foi direccionada para a enorme porta de madeira que existia no fundo do enorme corredor. Por baixo dessa porta saía um regato vermelho de sangue. Afinal o que gotejava não era água. Era estranho.

Amélia já estava para trás, banhada pelo horror mas António encheu-se de coragem e aproximou-se mais da porta. Uma aragem fria apoderou-se do seu corpo. Algo o afastou da porta quando ele tentou escutar o que se passava ali para além do gotejar.

A porta abriu-se sem que nada o fizesse prever. António ficou surpreendido e tolhido de movimentos com o espanto. Aquela divisão ia dar a parte nenhuma. Nada havia ali. Apenas uma parede nua com um buraco redondo que fazia passar o ar da rua. O sangue pingava do tecto que estava manchado de branco. Conseguia-se ver através da escuridão.

A mancha branca alastrou tão de repente como a porta há pouco se abrira. Um ser monstruoso e medonho desceu do tecto e colocou-se na frente de António.

- “Que queres daqui?”

António quis falar mas faltavam-lhe as palavras devido ao espanto e ao horror. Agora o sangue jorrava para o chão. Já não gotejava. Ainda era um mistério de onde estava a surgir.

Quando o vulto se tornou mais definido, António pôde ver que o monstro não tinha cara. Era uma massa disforme e avermelhada de sangue. Era dela que jorrava o sangue para o chão.

Começou a ficar muito frio junto à porta. O vulto já estava maior e exibia todos os órgãos que lhe caíam para o chão. A sensação de o ver não era agradável e António tentou fugir mas não conseguia. Tinha as pernas presas pelo pânico.

Quando ia a recuar para trás, o mostro cravou-lhe as suas enormes mãos ensanguentadas e arrastou-o para o interior do pequeno espaço, encostando-o à parede nua. O que fazer agora? Estava perdido.

Com uma força impressionante, o vulto ensanguentado deitou António no chão e cravou-lhe os seu horríveis dentes na garganta. O olhar demoníaco do agressor foi tudo quanto conseguiu ver antes que deixasse de sentir fosse o que fosse.

Amélia tinha voltado para trás mas foi arrastada também para a entrada da enorme porta de madeira. Ainda tentou gritar mas a força que a dominava era desmedida e ela nada podia fazer.

Foi também atirada ao chão e o seu pescoço foi apertado violentamente por apenas dois dedos fortes e ensanguentados. Foi o cheiro do sangue que dominou os sentidos de Amélia antes de deixar de existir.

Cerca de uma semana depois, vendo que o carro do casal ainda lá estava, resolveram procura-lo. António e Amélia tinham sido dados como desaparecidos por familiares e amigos e assim continuaram. Os seus pertences estavam ainda espalhados pelo andar de baixo da casa. O cão e a gata ainda pareciam aguardar o regresso dos donos no quarto onde haviam dormido na primeira noite Ao andar de cima ninguém se atreveu a subir e a procurá-los. Nada iriam encontrar. De dia não gotejava e o chão certamente estaria limpo como se ali não houvesse aquela porta por onde o sangue escorria durante a noite.













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