Monday, November 06, 2006

Auto da Luz

A tarde estava quente na cidade de Lisboa. Para os lados de Belém um taxista esperava pelos seus clientes enquanto ouvia o relato.

Aquele taxista não era um taxista comum. Era alguém que levava os seus clientes para um lugar muito especial:. Para o Diabo que os carregue ou então para o Quinto dos Infernos. As pessoas condenadas chegavam e o senhor nem lhes perguntava para onde era a viagem. Sem meias palavras, deixava-os sabe-se lá onde. Num sítio que se dizia ir dar mesmo ao Inferno.

E perguntam: onde ficava aquele local? Ninguém sabia ao certo. Diziam que ficava para os lados da Segunda Circular, mas um local com essas características teria de ficar fora da cidade num local mais ermo e desabitado.

As pessoas que eram vistas a entrar naquele veículo nunca mais apareciam para contar onde tinham estado e os rumores eram muitos. A situação, de tão misteriosa que era, originava alguma apreensão e histórias das mais rocambolescas que se podem contar.

Segundo rumores populares, as pessoas que eram vistas a entrar no veículo eram, normalmente, pessoas condenadas por pecados cometidos. Há quem diga que apenas era o espírito dessas pessoas que vagueava por ali e que apanhava o taxi. Dizia-se que o taxista nem existia ou que era o Diabo transformado. Já nem se sabia em quem acreditar, mas esta passagem veio deixar algumas pistas sobre o que acontecia. Pelo menos, naquela tarde de Domingo, as coisas aconteceram dessa maneira. Poderá ter sido uma excepção, mas não acredito.

Eram cerca de quatro da tarde quando um juiz se abeirou do taxi infernal e disse:
- “Boas tardes! Era para a Luz, se faz favor!”
O taxista olhou para ele com aqueles olhos sinistros que tinha. O juiz continuou:
- “De que é que está à espera para me levar à Luz!”
O taxista voltou a não responder e o juiz insistiu:
- “Ande lá homem! Mexa-se e rápido que tenho imensa pressa. Não quero perder por nada aquilo que se vai passar.”
Finalmente, o taxista quebrou o silêncio e com a sua voz saída das trevas argumentou:
-“Para a Luz vai passar-se muita coisa hoje.”
Deu uma gargalhada diabólica e arrancou a grande velocidade.

Enquanto o taxi seguia pelas ruas da Capital, o juiz e o taxista foram mantendo um estranho diálogo. Senão vejamos:
Juiz: - “Hoje ao final da tarde quero ver o que vai acontecer para os lados da Luz. Até já sinto um formigueiro nos pés.”
Taxista: -“Eu também, acho que se vai passar alguma coisa lá. Meu amigo! Eu tenho o poder de premeditar o que vai acontecer, mas quero que o meu amigo fique ansioso. Eu adoro fazer sofrer as pessoas!”
Juiz: - “Como assim?!!!”
Taxista: -“Eu sou o Diabo e tenho por missão guiar as pessoas para o mal.”
Juiz: -“E o que faz o Diabo dentro de um táxi?!!”
Taxista: -“Cumpro a minha missão que não lhe posso dizer qual é.”
Juiz: -“Onde eu me vim meter!”
Taxista: -“Não foi por acaso que o Senhor Doutor escolheu o meu táxi para ir até à Luz! ”
Juiz: - “Ai não?!!!!”
Taxista: -“Isso aconteceu porque eu quis. O senhor fez algo que agradou muito a Satanás. Tomou uma bela decisão! Ah! Ah! Ah! Ah!”

Parece que o Juiz foi conduzido para os lados da Luz e foi para a porta do Estádio à espera que algo acontecesse.

As horas passavam e o Estádio mantinha-se deserto. Nem parecia que deveria haver ali um jogo de Futebol. Apesar de estranhar todo aquele ambiente, o Juiz permaneceu por ali.

O taxista regressou ao seu posto para os lados de Belém. A tarde estava óptima para dar um passeio pelas ruas lisboetas. Muita gente se abeirou do táxi, mas não seguiu viagem. Nem podia.

Tinham passado cerca de duas horas desde o momento em que o taxista regressou ao seu posto. Um sujeito de fato e gravata começou a rondar a viatura. Era um empresário de Futebol e também queria- curiosamente- ir para o Estádio da Luz.

O taxista esfregava as mãos. As pessoas estavam ansiosas por ir para o palco onde, segundo elas, iria haver algo extraordinário. Ou então não! O taxista já sabia que ali não se iria passar nada, mas ele era o Diabo e queria que as pessoas rebentassem de tão curiosas que ficavam.

O Empresário de Futebol entrou no veículo do Diabo e este lá rumou a toda a velocidade em direcção à Luz. Durante a viagem, os dois intervenientes interagiram num diálogo curioso.:
Taxista: -“Então já conseguiu colocar o jogador?”
Empresário: -“Parece que ele apanhou um táxi na passada Quinta-feira e nunca mais voltou. Não sei dele!”
Taxista: - “Foi para o Céu! Ele aturou-o tanto, aceitou tanta falcatrua que o senhor lhe fez, aguentou sem descansar os rombos financeiros que o senhor infligiu e que o fizeram passar fome...”
Empresário: - “Eu só queria a minha comissão!”
Taxista: - “Muito bem! O Inferno aguarda por si um dia. Por agora, vá secar para o Estádio da Luz. Você e os outros...”
Empresário: -“Tenho a certeza de que me vou divertir imenso! Uh! Uh!”
Taxista: -“Vamos a ver se se diverte ou se sou eu que me divirto à custa de vocês todos!”
Empresário: -“Mas está a gozar comigo?!! Eu não admito uma coisa dessas!”
Taxista: -“Olhe que eu sou o Diabo e posso mandar o senhor para as profundezas do Inferno já.”
Empresário:- “Ora vá! Eu não tenho medo de ninguém. Nem do Diabo!”
Taxista: -“Chegámos! Saia antes que eu me chateie e o leve para...”

O empresário ficou junto à entrada principal do Estádio do Glorioso, mas estava algo incrédulo por não ver ali nada que indiciasse que ia haver jogo. Nem parecia o Estádio da Luz.

O táxi arrancou deitando fumo. A grande velocidade e fazendo grande chinfrineira com os pneus, foi seguindo o caminho de Belém. Uma enorme algazarra fê-lo parar de repente. Um coro de assobios direccionavam-se para um autocarro que passava por ali. Os seus ocupantes traziam bananas e sacos de amendoins e estavam muito entusiasmados porque iam ao Jardim Zoológico cumprimentar os macacos e acariciar as trombas dos elefantes.

De dentro do autocarro vermelho e azul, e debaixo de um coro de protestos, surgiu um homem: o Fiúza. Farto de tanto protesto, resolveu abandonar o autocarro à sua sorte e apanhar também o táxi do Diabo.

O Diabo arreganhou-se todo e perguntou ao Fiúza se ele também queria ir para o Estádio da Luz. Viria a arrepender-se porque o Fiúza, quando começa a falar, ninguém o consegue calar. É caso para dizer que nem o Diabo o atura.

O taxista ia passado! Já tinha ouvido mais de 100 vezes que era uma injustiça o Gil Vicente ter descido de divisão.

A conversa estava a aborrecer o Diabo de tal forma que ele voltou para trás e deixou o Fiúza no Estádio do Restelo a enfrentar sozinho a ira dos adeptos do Belenenses. É que o Diabo achou que não havia pior castigo do que enfrentar os adeptos azuis que lhe estavam cá com um pó...

Enquanto isso, no Estádio da Luz os dois homens apanharam a maior seca do Mundo à espera de algo que afinal não chegou a acontecer.

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