Aquele fim de semana prometia ser de emoções fortes e de facto foi. Mas eu queria que fossem de alegria e não de tristeza e mágoa.
No sábado teria um treino especial em que estariam presentes investigadores da Universidade de Coimbra na área da oftalmologia. Iríamos elucidar os futuros oftalmologistas para a importância da prática desportiva para as pessoas cegas e com baixa visão que muitas vezes são desaconselhadas a não praticar desporto por causa dos olhos mas acabam por cegar de qualquer maneira. Foi esse o meu caso. Como me arrependo de ter deixado o Desporto por causa disso mesmo! Talvez tivesse realizado o meu sonho de ir aos Jogos paralímpicos. um sonho que tem trinta anos, a mesma idade do protagonista principal desta minha crónica e do qual mais á frente vou falar.
A noite estava reservada para as comemorações dos trinta anos também da delegação da ACAPO de Coimbra. Houve um jantar que serviu para voltarmos a estar juntos outra vez. Aproveitámos bem estes momentos, pois não têm havido muitas hipóteses de nos encontrarmos como sucedia antes da pandemia.
No domingo sim iria realizar parte do meu sonho. O Porto deslocava-se curiosamente á minha terra e iria jogar com o Anadia. Era o mais perto que estava de ver o meu ídolo ao vivo. Ver não, assistir a ele a jogar.
Houve uma amiga que me ajudou e estava ao meu lado a narrar o que se estava a passar em campo. O Taremi estava a aquecer. Ela foi-me contando o que ele ia fazendo. Estava emocionada e gritava por ele. Mas estava longe. Dificilmente ele me viu.
O jogo decorreu. Os azuis do Porto, que por acaso eram amarelos, golearam os azuis da Bairrada por 6-0. Torcia pelo Anadia, claro está. É o clube da minha terra e o presidente foi muito amável em me ajudar. Infelizmente Sérgio Conceição, com o resultado tão dilatado, não colocou quem eu queria ver jogar em campo. Fiquei dececionada e triste, pois gostava de gritar por ele, vibrar a cada vez que a minha amiga me dissesse que ele tocava na bola.
O pior estava guardado para o fim. No relvado houveram pessoas que tiraram fotos com ele, que o cumprimentaram, que falavam com ele. Seriam certamente momentos únicos mas eu ando há mais de três anos a sonhar conhecer aquele que certa noite, apontando três golos e mostrando-me nas entrelinhas que quando se tem um sonho ou um objetivo, deve-se lutar por ele. Nem que se tenha de ir rumo ao desconhecido, começar por um clube menor para chegar ao topo. Perder algo para depois ganhar. Dar um passo atrás para ganhar balanço para a frente. Nessa noite, sem o saber, o Taremi deu-me coragem, alento onde pouco restava por força de eu ter perdido tudo
Tudo começou numa escura noite de agosto de 2019. Nessa altura tentava descobrir o Mundo de uma outra maneira que me era desconhecida, apesar de eu sempre, desde que nasci, ter tido contacto com pessoas totalmente cegas. Imaginava ser difícil viver na escuridão mas nunca pensei ser tão cruel. Um mês depois de ter saído para a rua e enfrentado a vida com coragem e abnegação (estive quase dois meses internada) apercebi-me que ia passar o resto da minha vida em constante sobressalto, sem ver sequer a minha imagem no espelho, sem correr na rua, sem ver Futebol…
Para além da cegueira, a minha doença causa ainda dores terríveis nos olhos e na cabeça. Naquela noite enfrentava uma crise muito forte. Só me lembro de duas ocasiões em que estava assim. Ambos os episódios ocorreram durante a jornada de trabalho. O glaucoma provoca a secura dos olhos, pois o líquido não circula, daí a pressão alta. O lado de dentro da pálpebra fica completamente em ferida e causa dores que não desejo a ninguém. Também o próprio olho e a cabeça doem horrivelmente. Agora as coisas estão um pouco mais calmas mas muitas vezes ia trabalhar praticamente sem dormir por causa das dores. Só aliviavam quando ia correr para a rua ao ar livre. Com o computador e o ar condicionado estava feita a mistura perfeita para uma grande crise. Lembro-me de uma vez ter começado a ter dores pelas onze da manhã. Apesar de o olho que já não via ser o que doi mais, o outro olho ficava intolerante á claridade e tinha constantemente de limpar o nariz. Quem é que conseguia trabalhar assim? Fechei os olhos e via tudo vermelho. Experimentei tirar uma foto com o telemóvel para ver como estava o olho. O que eu vi deixou-me horrorizada. O olho estava todo da cor do sangue. Até tinha a cara dormente de tanta dor. Tinha gotas mas não estavam naquele dia a fazer efeito.
As dores acalmaram enquanto estive a tomar medicamentos para as cirurgias do outro olho. Depois voltaram ainda mais fortes. Era assim que me encontrava nessa noite de agosto de 2019 em que o Rio Ave goleou o Desportivo das aves por 5-1 e surgiu o taremi.
Nessa noite estava a questionar o sentido da vida. O sentido da minha vida. Tinha uma doença da qual não se morria, mas que me ia vergar á cegueira e ao sofrimento para o resto dos meus dias. Por quanto tempo mais aguentaria viver assim? Que mal fiz eu para merecer tal destino? Há gente tão má e nada lhes acontece…por outro lado, eu comecei a perceber o que era o sofrimento ainda com tenra idade. Que andava aqui a fazer? Não valia a pena viver assim. O que me aliviava estas dores excruciantes já não podia fazer. Era ir para a rua. apanhar ar livre. Sentir a frescura de uma noite, por mais que fosse verão, a atingir-me os olhos doridos. Sempre foi assim que acalmei estas dores. Á minha frente não se afigurava um cenário bom. Estava em extremo desespero e sofrimento.
Numa primeira fase também senti tristeza por não ver Futebol. Quando deixei de ver, a época futebolística tinha terminado. Só agora dava conta da falta que o futebol fazia na minha vida. Como eu gostaria de ver os golos apontados por este jogador que agora chegava ao rio Ave?
Assim começou. Do sentido que a minha vida deixou de ter por causa das dores e da cegueira, comecei a prestar atenção ao relato do jogo que estava a ouvir. Já que este jogador se estava a destacar, por que não o seguir mais atentamente? O jogo terminou. Naturalmente o taremi foi considerado o homem do jogo e irradiava felicidade na flash interview. A sua alegria e o seu sorriso acabaram por me contagiar e sorri também, no meio ás lágrimas de tristeza, desespero e dor. Incrivelmente, as dores aliviaram um pouco. Não sei o que aconteceu. Estava a colocar gotas nos olhos já há algum tempo e não faziam efeito.
Depois surgiu Carlos Carvalhal, na altura treinador do rio Ave. Ele contou a peculiar história da vinda do Taremi para o Rio Ave. O que ele arriscou, o que ele terá perdido em busca de um sonho. A coragem que teve para se aventurar no Desconhecido. Voltei a sorrir. Nos dias que correm, qual seria o jogador que vinha ganhar dez vezes menos para qualquer lado. Sinceramente, nem eu o fazia. Sou sincera. Aquele jogador teria de ter algo especial, algo de muito positivo.
A partir desse momento, ouvir os relatos dos jogos do rio Ave passou a ser algo importante para mim. De referir que naquela altura, como a minha situação era recente, não tinha apoios e ajudas que tenho hoje. Nem sequer sabia ainda trabalhar com um computador com leitor de ecrã que ´´e muito diferente de se usar o computador com o rato. Também ainda não tinha aplicações para ler livros, algo que hoje, como sabem, ocupa grande parte da minha vida.
O que se passou a seguir está bem testemunhado neste meu humilde espaço onde eu abro a minha alma a quem queira ler. A emoção que senti quando o taremi sozinho apurou o Rio Ave para a Liga europa, o desgosto que senti quando ele assinou pelo Porto, a tristeza por ele ter sido repudiado pelo treinador que veio treinar o meu clube, o golo que festejei num dia e chorei por não o poder ver no outro, a defesa que faço incondicionalmente dele face aos ataques de que é alvo, o misto de sentimentos quando ele marca um golo…
Agora choro. Tenho o coração partido. Volto a questionar o sentido da vida. Por que é que me foi posto no meu caminho a alguém que chegou a mim sem o saber, mas eu não posso chegar a ele? Foram muitas as coisas que impediram que um dia o viesse a encontrar ou mesmo tivesse uma camisola dele. Naquela noite estabeleci como objetivo, já que tudo na minha vida eu tinha perdido, que gostaria um dia de o encontrar. Primeiro não tinha ajuda de ninguém e não estava preparada sequer para enviar uma mensagem seja a quem for, depois veio a pandemia que adiou um evento em que ia participar e estava o Tarantini do rio ave a quem certamente pediria ajuda. Depois, para complicar definitivamente as coisas, vai para o Porto. Eles certamente não me ajudariam pelo simples facto de ser adepta de um clube rival.
Neste domingo voltei a sorrir porque pelo menos tentaria aquilo por que esperei ao longo destes três anos. Estaria num campo neutro, por sinal o campo do clube da minha terra. Trazia comigo uma amiga que me ia descrevendo o que se passava no relvado. Que bonito seria eu assistir ao vivo ao jogo dele. Iria apoiá-lo. Dar-lhe alento e força porque, devido á situação política no seu país, ele também não atravessa pessoalmente um período fácil, mesmo assim dá o melhor em campo e mostra grande coragem e abnegação fora dele. Eu tenho medo que a sua coragem e alguma rebeldia o possa prejudicar.
Infelizmente, face ao avolumar do resultado, Sérgio Conceição não o colocou em campo um minuto que fosse para eu o poder aplaudir. A claque do Porto não o homenageou ao minuto nove como tantas vezes ouço em minha casa. Por uma vez na vida que fosse, cantaria com eles. Cantaria com a alma. Bem alto, apesar da voz embargada pela emoção.
Se já estava triste por o não poder apoiar ao vivo, ainda fiquei mais destroçada no final do jogo. A minha amiga descrevia o quanto ele era simpático e sociável, tirando algumas fotos e cumprimentado algumas pessoas. Essas pessoas talvez gostassem de o conhecer mas duvido que tenham um motivo tão especial para o fazer. Gostaria que ele estivesse junto a mim, um momento que fosse.
Depois, para piorar ainda mais as coisas, surgiu um jogador do Anadia bem junto a mim. Entregou uma camisola a familiares que o esperavam. Era a camisola do taremi… Essas pessoas estavam felizes. Também para elas aquela camisola significava muito. Fiquei destroçada. A dor que senti e ainda hoje, volvidos alguns dias, sinto é muito forte. Que mal fiz eu para a vida me dar algo para depois mo arrancar de forma cruel e desumana. Será que m o colocou no meu caminho naquela noite para que eu pudesse ter alento para seguir em frente, apesar da adversidade, como quem coloca uma muleta na mão de quem partiu uma perna e depois, quando a ferida já está cicatrizada, lhe é retirada para que a pessoa possa caminhar sozinha?
Vi esfumar-se o meu sonho. Tão perto que estive dele. Não estou a ver outra oportunidade como esta. Mais uma vez a vida me afastou de quem, num escasso momento, em poucos minutos, fez mais por mim sem o saber do que médicos, enfermeiros ou auxiliares durante os quase dois meses que estive internada. Com o ar mais frio e seco limitaram-se a dizer simplesmente, perante o meu desespero, que lamentavam o que me tinha acontecido. Acabava de perder o resto da pouca visão que tinha, a minha autonomia, o meu trabalho, a possibilidade de correr na rua, até a possibilidade de me ver ao espelho…é toda uma vida que fica para trás, uma vida feita em pedaços que é difícil reconstituir.
Ainda hoje se passam coisas na minha vida que me impedem de seguir em frente. Coisas bem graves. Coisas que me fazem sentir desprotegida, vulnerável, coisas que me impedem de lidar da melhor forma com o trauma que foi ter perdido a visão. Coisas que me estão a preocupar e a desesperar. Coisas a que tenho direito enquanto cidadã portadora de deficiência. Estão-me simplesmente a negar direitos, a fazer com que todos os dias lamente a minha existência sem ver fim á vista, apesar da luta constante nos últimos meses. Coisas que nada têm a ver com o futebol mas com o mundo-cão em que vive neste país quem tem o azar de sofrer uma fatalidade que lhe muda a vida.
Caso se tivesse concretizado a realização do meu sonho. Seria a pessoa mais feliz deste mundo. Não iria ficar a ver, a Segurança social não me daria o que eu tenho direito, mesmo assim, veria com os olhos da alma que, até esses, estão fechados.
Tentei da melhor forma explicar como me sinto mas, por mais que eu escreva, não conseguirei explicar a dor imensa que invade o meu coração.
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