Tuesday, April 20, 2010

As pessoas perante nós

Nós, deficientes visuais, para além dos obstáculos físicos que naturalmente nos surgem temos também de lidar com o grande obstáculo que é a compreensão humana.

Será assim tão complicado lidar connosco sem nos causar embaraços? Parece que sim. No espaço de muito pouco tempo, às vezes tendo como protagonista a mesma pessoa, chega-se do oito ao oitenta.

Há que ter calma e pensar que para algumas pessoas é completamente novo lidarem com alguém com uma deficiência visual. Antes nunca sequer tinham visto um de perto. Por vezes é difícil manter a cabeça fria face a algumas atitudes mas tem de se fazer um esforço hercúleo para não se magoar a pessoa como ela, sem querer, nos magoa a nós.

Passemos a alguns exemplos vagos mas que acontecem em todo o lado e a toda a hora. Ao princípio, a maioria das pessoas pensa que, por termos uma deficiência somos seres incapazes de fazer seja o que for. Andar na rua então...
“Vais a pé para baixo?!!!! É muito longe, há trânsito...”
E eu lá tenho de desdobrar vezes sem conta a ladainha de que estou habituada a andar a pé quase desde que nasci, que o único transporte que tenho para me deslocar da minha inacessível aldeia são as minhas pernas. Além disso, estou muito gorda, não por comer em demasia mas pela falta do exercício físico que fazia enquanto atleta de alta competição e o médico mandou-me fazer caminhadas. Agora que mudou o horário e que o tempo começa a estar convidativo, toca a ir dar as benditas caminhadas a ver se a minha roupa me volta a servir.

Uma pessoa nos Covões há uns anos atrás estava a perder a visão devido ao glaucoma. Essa nem foi propriamente pela falta de convívio com deficientes visuais, visto ter um filho que cegou por acidente. Ela estava a ver trinta por cento enquanto que eu tenho dez por cento de acuidade visual. Ela não dava um passo sozinha e muitas vezes fui eu que via menos do que ela a guiá-la. A explicação é simples: é um choque enorme para uma pessoa adquirir a cegueira ou a deficiência visual quando vê cem por cento. Apanhando-se a ver trinta por cento que seja, é muito complicado adaptar-se. Eu já nasci assim e tive desde a nascença de me adaptar e ganhar estratagemas de defesa para viver autonomamente.

- “Cuidado! Olha que cais!”
Que dizer disto? Por onde começar? Bem, começo por dizer que a probabilidade de eu cair por qualquer motivo é a mesma de outra pessoa qualquer cair, com a excepção dos deficientes motores ou dos idosos que têm uma probabilidade um pouco mais alta de cair. Desde quando se ver mal é sinónimo de se cair com mais frequência. Vou num autocarro, já tem acontecido, o autocarro tem de travar de repente, há um turbilhão de pessoas que cai lá para trás e eu continuo agarrada a qualquer coisa. Já aconteceu isto mais do que uma vez e nem se pense que as pessoas que caíram eram idosos a quem as artroses já martirizam. Quase todos eram jovens. De salientar que nunca fui parar ao hospital devido a uma queda. Se levei pontos em alguma parte do meu corpo foi devido a operações e não devido a quedas. Há pessoas que dizem que foram parar ao hospital por causa de quedas, que partiram a cabeça, os dentes, se pisaram todas. Mas o que é isso? Dou as minhas quedas, claro que dou mas na maioria das vezes é mais por distracção do que por falta de vista. Mais uma vez a explicação está nos mecanismos que o facto de ser deficiente visual desde a nascença dá mas não só. Devido ao Desporto, tenho uma enorme capacidade de equilíbrio e uma força brutal que só não uso para outras coisas devido ao r isco de descolar a retina.

Ainda nos autocarros que é onde ocorrem mais cenas deste género:
-“Quer-se sentar?” e a pessoa, por vezes uma idosa com os sacos de compras atrelados levanta-se. Na maioria das vezes recuso mas alturas há em que me aproveito da situação. Normalmente isso acontece quando tenho de colocar a carteira na mochila ou quando eu própria venho carregada de sacos. Nem se pense que é por não ver. Simplesmente dá jeito. Outra situação muito frequente que acontece (e aí a culpa é de dois ou três colegas meus do mais mandrião que há, do género de ter de pedir licença a um pé para mexer o outro e do género de daqui a mais não caberem nas portas, tal é o sedentarismo) é o facto de alguns condutores pararem mesmo em frente da ACAPO quando se apercebem que há um deficiente visual. Normalmente eu saio na paragem antes e vou aqueles escassos minutos a pé (se eu assim não fizesse, também não haveria aquelas fotos dos carros nos passeios que aqui tenho mostrado). Às vezes os condutores insistem para que fique. Eu alego que ali não é paragem. Às vezes até saio na paragem a seguir ou até mais lá para baixo como tem acontecido. Mas não, deficiente visual que por acaso vá num autocarro que passe nos Combatentes logo vai para a ACAPO quando na verdade vai para o trabalho. Eu não sou como dois colegas meus do género que atrás referi que apanharam o autocarro numa paragem para saírem na paragem seguinte. De risos.

E já que falo de autocarros, termino esta secção com uma história deliciosa. Que pena a Marina Mota nos ter pedido histórias engraçadas antes de este episódio se ter passado! No ano passado tivemos uma pequena festa de Carnaval nas instalações da ACAPO. Consistia apenas num baile e concurso de melhore disfarces. Eu comprei uma máscara horrível que tinha visto em Anadia e que toda essa noite me ri só de pensar o susto que um artista de Fiães que tinha feito batota no Hattrick apanharia se estivesse muito quentinho a tratar das suas mil e uma equipas pela madrugada e alguém lhe assomasse à janela com aquela máscara. Tinna de pensar numa indumentária à altura para acompanhar a máscara. Então lembrei-me de uma camisa enorme aos quadros que tenho e de uns corsários roxos para me vestir de um monstro qualquer. Tinha no entanto de arranjar um pau ou algo assim para empunhar. A minha mãe arranjou-me um cabo de uma vassoura e lá fui eu com ele até Coimbra. Ia no autocarro (escusado será dizer que era num que ia para as imediações da ACAPO). Preparava-me para sair na paragem habitual. Não sei se daquela vez o condutor me perguntou se queria sair pela frente e na ACAPO se as criaturas simplesmente me viram deslocar para a porta envergando o pau da vassoura. Só sei que quase me rebentei a rir com os comentários de duas idosas (tinha de ser! Essas pensam que somos doutro planeta e, assim que nos vêem começam a rezar baixinho). Diz uma para a outra:
- “Coitadinhos! Ainda me causa impressão como conseguem andar na rua. Valha-nos Deus!”
E a outra responde:
- “Estamos na época da Quaresma, altura de pedir a Deus por estes infelizes.”
Volto a recordar que tudo isto foi provocado pelo facto de eu trazer um cabo de uma vassoura para uma festa de Carnaval e que alguém mais cego do que os próprios cegos confundiu com uma bengala branca.

“Percebeste....ou queres que te faça um desenho?”
Sei que isto é uma expressão aparentemente inofensiva e que se usa sem intenção de magoar ou molestar mas odeio quando me dizem isso e sei de deficientes visuais que vão mesmo à cara de quem abriu a boca antes de pensar. Isto para magoar não há melhor. Conheço uma pessoa que tem o hábito de dizer isto a toda a gente e tem o azar de mo dizer a mim também. Da primeira vez sempre lhe respondi que era má a interpretar desenhos por não reparar nos pormenores, na segunda calei-me mas senti vontade de lhe dizer das boas ou até de lhe ir à cara (tem sorte em eu pensar que não é por mal que diz isso e porque nunca lidou com ninguém como eu, se fosse com uma pessoa que eu conheço já tinha levado uma tareia). Da próxima leva um aviso, até para prevenir embaraços futuros e se houver próxima então não sei o que faça. É isso e a mania que algumas pessoas têm de, lá por conseguirmos ver uma coisa, não significa que reparemos noutras.

Resumindo, há que ter calma e paciência connosco. Nem sempre é fácil para nós ou para quem lida connosco mas temos de nos aprendermos a adaptar às diferenças uns dos outros.

No comments: