Monday, September 21, 2020

Morri para te incomodar

 

Decorriam mais de quatro horas desde que aquela reunião de negócios havia começado. O ar condicionado na sala estava ligado mas António começou a sentir um súbito calor.

 

Os convivas discutiam alterações no orçamento da empresa e António estava bastante ocupado a alargar o nó da gravata. Havia largos minutos que uma estranha sensação de aperto se apoderou do seu peito. Entretanto ninguém lhe prestava atenção. Números e gráficos eram exibidos e analisados com indiferença.

 

Poucos minutos depois, António sentiu a vida abandoná-lo. A sala de reuniões rodopiou e António caiu com estrondo no chão. Logo cabeças se voltaram dos números e miraram o chão. Equipas de emergência foram acionadas mas nada mais houve a fazer. António jazia morto no chão. Fora uma morte fulminante e sem aviso.

 

Entretanto, numa luxuosa vivenda no sul de Portugal, a mulher de António preguiçava numa poltrona castanha. Na aparelhagem sonora tocava o tema “Despiu A Saudade” de Ana Moura. Noutra divisão longínqua da casa, o telefone fixo tocou, arrancando Luísa ao seu devaneio.

 

A morte do seu marido apanhou-a como um murro no estomago. Tinham férias marcadas para a américa do Sul dali a duas semanas. Não podia ser! Tanto tempo a planear esta viagem para agora ele ir viajar para um outro local sem retorno. Tantas foram as vezes em que o seu marido percorreu os quatro cantos do Mundo em negócios e ela ficou em casa sonhando acordada com revistas de viagens no regaço. Ele prometera levá-la à América do sul e agora estava tudo acabado. Que fazer agora da vida! Ela que sempre sonhou conhecer a patagónia! Até na morte o seu marido era malvado.

 

Dois dias depois foram as cerimónias fúnebres. O caixão fechado repousava no meio do amplo salão exageradamente decorado com quadros e peças de cobre. Amigos e familiares inundaram Luísa de condolências. Ela, indiferente a tudo, só pensava no que seria da sua vida dali para a frente. Nunca tivera necessidade de trabalhar. A sua casa tinha tudo do bom e do melhor. O seu marido andava sempre por fora. O ócio ocupava-lhe grande parte do dia. Desconhecia o que a vida lhe ia reservar dali para a frente.

 

António jamais aceitaria ser cremado por convicções religiosas. O seu caixão ficaria bem visível num jazigo de família. Após o último adeus, Luísa recolheu sozinha a casa já ao final da tarde. As suas pesadas roupas pretas de viúva imediatamente foramatiradas para um canto e um traje casual com motivos de flores e pássaros foi vestido á pressa. O salão onde decorrera o velório fora aspergido com incenso para tirar o cheiro a velas.

 

Após um mês do falecimento de António, Luísa experimentava sensações estranhas naquela enorme casa vazia. Aos poucos foi-se sentindo triste e incomodada. Afinal o seu marido ainda lhe fazia muita falta. Já há muito que se fora o sonho de com ele viajar pela américa do Sul. Agora dava consigo a pensar o que aconteceria se ele regressasse a casa vindo de uma viagem de negócios ou de uma simples reunião de acionistas da sua empresa de cortiça.

 

As noites no seu imenso quarto vazio eram longas e sombrias. Cada vez mais sombrias. Permanecia acordada a maior parte do tempo e quando finalmente adormecia, logo o seu sono era povoado por cada vez mais inquietantes pesadelos.

 

Uma noite, a casa parecia assustadoramente sossegada. Por vezes Luísa lia livros de poesia para chamar a si o sono. Naquela noite não estava a prestar atenção aos poemas. O seu espírito vagueava inexplicavelmente para tudo, menos para o que estava a ler. Depois de longos minutos lutando com a obra, ela foi-se deitar.

 

Estranhamente, naquela noite, o sono veio depressa. Nem cinco minutos esteve deitada na almofada com os olhos abertos. Ela nem se apercebeu que mergulhava algures entre o sonho e a vigília.

 

O quarto era como ela o conhecia, todos os objetos estavam nos seus lugares. O velho sobretudo de António repousava ainda nas costas de uma cadeira onde ele o havia deixado no inverno anterior. Apesar de ser tudo tão familiar, algo estava diferente. Horrivelmente diferente.

 

A janela que dava para o jardim encontrava-se aberta. Uma incómoda corrente de ar percorria o quarto agora. Luísa reparou que uma cadeira estava encostada a essa mesma janela. Em cima encontrava-se um livro. Era um livro de magia negra. À luz fraca do luar, Luísa conseguiu ler perfeitamente do que se tratava e um arrepio vindo do fundo da sua alma percorreu-lhe o corpo. Queria fechar a janela mas algo no livro a impedia. Acordou com o coração a bater muito depressa e ficou aliviada ao ver que a janela estava fechada e nenhuma cadeira havia sido arrastada para lá. Quanto aos livros que tinha no quarto, conhecia-os a todos. Jamais ali teve um livro de magia negra.

 

Alguns dias se passaram desde esse inquietante sonho. O verão dava lugar ao outono e os dias iam ficando cada vez mais sombrios. Luísa detestava o outono. Agora, sozinha numa casa tão grande, temia alguma coisa. Não sabia o que era. Durante o dia tinha a sua empregada para lhe fazer companhia mas as noites eram cada vez mais difíceis de ultrapassar. Era estranho! Há trinta anos que era casada e todo o fulgor romântico do seu casamento há muito que se esfumara. Se ela tolerava António, era pela vida opulenta que ele lhe dava. Nada faltava em casa. Não tiveram filhos. Talvez não tenha havido tempo para pensar nisso. A António, só os negócios interessavam. Talvez houvesse algo mais. Uma amante, talvez, embora não acreditasse.

 

No início de uma tarde como as outras, a empregada de Luísa surgiu com um envelope castanho nas mãos. Inexplicavelmente, Luísa teve um sobressalto. O envelope tinha a forma de um livro. Um livro da mesma espessura do que vira no seu sonho. Tinha medo de tocar no envelope e a empregada mostrou um ar intrigado ao sentir a repulsa da patroa em pegar-lhe. Vinha endereçado a ela mas ela não tinha mandado vir livro nenhum.

 

As suas suspeitas confirmaram-se. Era o mesmo livro que vira no sonho. Dentro havia uma dedicatória: “para a minha fiel companheira de 30 anos. Nunca te esquecerei. António”.

 

Com as mãos trémulas, verificou a data do correio. Somente tinha sido colocado há dois dias. Não podia ser! Fazia quase três meses que António tinha morrido. Talvez tenha sido um envelope extraviado mas não era nada de António enviar-lhe livros. Se fossem flores ou joias…

 

O seu marido sabia também que Luísa era muito frequentadora da igreja e nada queria ter a ver com o sobrenatural. Quando o assunto era abordado em ocasionais reuniões de amigos, ela logo pedia para mudar de assunto.

 

Que fazer agora com o livro? Era estranho ter sonhado justamente com aquele livro e agora ele ser-lhe enviado pelo seu marido morto que também não aparentava ser apreciador de magia negra. Estaria ela enganada? Havia muito da vida do seu marido que desconhecia.

 

Não queria aquele livro no quarto. Disso tinha a certeza. Pediu á sua empregada que o arrumasse no sótão. Já lá estavam muitos livros que ela jamais ousou ler. Não fazia mal nenhum colocar lá mais um. Ainda lhe passou pela cabeça coloca-lo a arder na lareira mas uma inexplicável onda de terror fez com que ela mudasse de ideias. No sótão estaria melhor. Estaria mesmo?

 

Nessa mesma noite, Luísa voltou a adormecer anormalmente rápido. Voltou a sonhar que se encontrava deitada na cama. Passos medonhos e abafados ecoavam no sótão. A cada contacto do pé com o chão, ela sentia arrepios. Nada naqueles passos os distinguia de outros passos, a menos que…conhecia bem aqueles passos. Eram de um homem morto. Conhecia-os bastante bem. Eram de António. Levantou-se de um salto e foi acender a luz do teto. Podia ter ligado o candeeiro da mesinha de cabeceira mas nessa altura já não raciocinava. Nada aconteceu. Se o quarto estava escuro e frio, assim continuou. Do sótão chegavam outros sons mais estranhos. Parecia o arrastar de correntes!

 

Ir ao sótão estava fora de questão. Para além dos barulhos cada vez mais assustadores que vinham de lá, foi naquele local que ela mandara guardar aquele livro naquela mesma tarde. Um sussurro vindo de todas as direções e ao mesmo tempo de nenhuma percorreu o quarto. Alguém ou alguma coisa chamava o seu nome. Ela acordou. O quarto estava silencioso. Acendeu o candeeiro e começou a ler para se distrair. Dali a pouco já era manhã.

 

Os terrores noturnos Foram-se adensando. Cada vez mais inquietada, pediu à sua empregada que lá ficasse durante a noite mas esta, alegando ter marido e filhos pequenos, recusou fazer-lhe companhia. Além disso, também ela já tinha medo de estar la em casa. Sentia tam´bem um clima estranho. Não sabia explicar. Talvez tenha sido depois que a patroa lhe mandou colocar aquele livro que recebeu ainda envolto no envelope lá em cima no sótão. A partir dessa tarde, sentia arrepios sempre que ia arrumar alguma coisa no sótão.

 

Passou mais uma semana. O tempo estava cada vez mais frio e anoitecia cada vez mais cedo. Havia uma semana que chovia sem parar. A lareira estava acesa e o cheiro doce da lenha a queimar conferia um certo conforto à casa vazia e desprovida de alma. Apesar de estar sozinha, Luísa sentia outra presença na casa enquanto olhava para o fogo. Tentava pensar noutra coisa mas cada vez pensava mais em António e em como ele lhe aparecia todas as noites em sonhos.

 

Cada noite que passava, os sonhos eram mais inquietantes. Muitos eram passados no próprio quarto mas os cenários depressa foram mudando. Naquela noite, Luísa sonhava que percorria as galerias de uma grande catedral que estava apenas iluminada com grandes velas que davam um ar ainda mais sombrio ao local. Primeiro ela estava sozinha parada no meio do corredor. Os bancos estavam também vazios. O corredor ainda era longo e figuras sombrias decoravam as paredes. O que estava ali a fazer?

 

Num ápice, os bancos foram preenchidos por figuras negras e sombrias. Uma corrente de ar gelado apagou a maioria das velas. Sentindo medo, ela tentou fugir mas estava paralisada. Uma das figuras negras agarrou-a bruscamente. Ela virou-se e ficou gelada. Era António ou o que restava dele. A sua face descarnada sorria-lhe. Outras dessas figuras negras destaparam as caras. Os mesmos rostos de mortos. Acordou. A angústia apoderava-se do seu ser.

 

A chuva deu lugar a soalheiros dias de outono. Foram duas semanas de alguma acalmia. Parecia que tudo estava a conspirar para ganhar novo fôlego para o ataque final. Até a casa parecia estar mais calma, se bem que não tenha estado alguma vez agitada. Pelo menos aos olhos de quem a visitava. Seria por pouco tempo.

 

Numa fria e tempestuosa noite de novembro, a chuva e o vento sacudiam árvores e o portão de acesso á casa. Temendo ficar ás escuras, Luísa recolheu mais cedo ao seu quarto. O barulho da intempérie impedia-a de se concentrar nos poemas. A solução era simplesmente ficar deitada.

 

Uma tábua rangeu algures. Logo se seguiu outra e outra. Eram passos. Agora não estava a dormir. Tinha a certeza. O que era aquilo?

 

A janela abriu de rompante. Seria impossível uma rajada de vento a abrir assim, por mais forte que fosse. Com o coração embargado, logo se lembrou daquele primeiro sonho com o livro de magia negra em cima da cadeira. Olhando ainda melhor através da escuridão, a cadeira lá estava. Em cima jazia o livro que se julgava no sótão ainda dentro do envelope.

 

A porta também se abriu. Uma figura negra entrou empunhando uma vela daquelas bem grandes. Ela bruxuleava com o vento. Luísa reconheceu a figura que empunhava a vela. Era António. As suas roupas negras cheiravam a uma mistura de terra, cal e morte. Sem aviso prévio, as suas mãos ossudas agarraram-lhe os pulsos. Era uma força descomunal. Nenhum ser humano a seguraria com toda aquela força. Só mesmo alguém vindo do reino das trevas.

 

Com a outra mão, a figura apanhou o livro de cima da cadeira. Apenas com uma mão, foi revirando as páginas, deixando um pouco que o vento que vinha da rua virasse algumas páginas ao acaso. Por esta altura, já o pânico se apoderava de Luísa.

 

Com um revirar mais rápido de páginas, o livro parou e António ou o que restava dele inclinou-se com os seus olhos que já não tinha.

 

Esquecendo o livro, arremessou aquela que em vida fora a sua mulher de encontro á cama. Com um baque surdo, Luísa deixou-se cair. Ia morrer, não tinha dúvidas. Já estava por tudo. Não havia como escapar. A coisa era mais forte do que ela.

 

A coisa que em vida fora António, seu marido que prometeu levá-la à américa do Sul, tomou os seus lábios. Em vez de a beijar, cravou uns dentes incrivelmente afiados nos seus lábios. O sangue jorrou. Com os dedos ossudos e as unhas incrivelmente compridas, rasgou-lhe a camisa de flanela quase ao meio e as marcas dos seus dedos logo se fizeram notar no seu corpo.

 

A coisa foi cravando unhas e dentes praticamente onde encontrava. No espaço de minutos, o corpo de Luísa era uma massa ensanguentada.

 

Uma súbita mudança deu-se no estado de espírito de Luísa. Já não sentia medo. Sentia antes uma força que era estranha para ela. Foi a última coisa que experienciou antes de se quedar imóvel.

 

No dia seguinte, um cenário de horror esperava a empregada. Luísa jazia morta na sua cama. O corpo tinha marcas muito estranhas. O livro de magia negra permanecia ainda em cima da cadeira na mesma página onde tinha ficado. Imagens de corpos em sacrifício ilustravam a página. O que estava escrito por debaixo das figuras era uma amálgama de letras, números e símbolos que ninguém poderia compreender.

 

Como se tratava de uma morte não natural, o corpo seguiu para a morgue para averiguar a causa da morte. No dia seguinte, bem cedo, chegaram os médicos legistas para proceder á autópsia. A maca onde jazia o corpo de Luísa achava-se vazia, o lençol ensanguentado estava atirado para o lado e o livro de magia negra encontrava-se aberto na mesma página em que o encontraram em casa. Os mesmos carateres e as mesmas imagens intrigaram os médicos. Sentiram-se assustados. Eles ainda não sabiam mas não havia cadáveres nesse dia para autopsiar. Inexplicavelmente, todos arredaram os lençóis para o lado e desapareceram. Nem nas câmaras havia corpos. Desapareceram todos. Alguma força do mal os levou!

 

No comments: