Wednesday, August 25, 2010

Isildo

Todos nós sabemos que em África as condições de vida são extremamente difíceis. Que a esperança média de vida é baixíssima comparada com a Europa e com os Estados Unidos. Que existe uma elevada taxa de mortalidade infantil e de complicações durante o parto. Que se morre de doenças infecto-contagiosas como a tuberculose.

Olhamos para estes flagelos do continente africano como meros números. Sentimos pena mas eles estão demasiado longe para nos preocuparmos. Pouco ou nada podemos fazer para ajudar dada a extrema precariedade das estruturas e dos povos.

O caso muda de figura quando alguém que conhecemos é vítima desses flagelos. Numa conversa entre amigos- uma conversa banal- tive conhecimento da morte de Isildo devido a tuberculose. Não pude evitar um certo choque. Como é que alguém da minha idade, com uma licenciatura e que até estava a leccionar numa universidade em Moçambique se deixa levar pela doença até ao desfecho fatal? Simples. Porque é moçambicano e no seu país não existem meios para curar convenientemente a tuberculose.

Já há tempos correu a notícia de que Isildo havia casado em Moçambique e que a sua esposa e a criança que esperavam sucumbiram ambas durante o parto. Em pleno século XXI custa a acreditar numa tragédia dessas. Há cem anos atrás era normal isso acontecer e era muito triste. Pelos vistos em África, mais propriamente em Moçambique, é natural.

Conheci o Isildo já há longos anos. O Presidente da ACAPO veio falar comigo para que eu ajudasse um estudante africano que tinha entrado para a ESEC. Vinha de Moçambique e era totalmente cego. Eu estava no último ano do meu curso e ele acabava de chegar. Estava no Curso de Educação de Infância em que era o único homem da turma. O primeiro encontro deu-se no Pólo 2 da ESEC. Eu raramente lá tinha aulas mas ele passava lá a maior parte do tempo. Aquelas instalações eram miseráveis, refira-se. Ajudei-o no que pude sempre que o encontrava na escola.

Ele passou a frequentar as instalações da ACAPO e a participar em algumas actividades. Fazíamos mesmo questão em que ele participasse para se integrar. Lembro-me de ele ter feito um ou dos treinos de Goalball connosco e de ter ido connosco a um campeonato para os lados de Alverca. Notava-se que ele estava radiante.

Isildo tinha um defeito. Agora ao recordar isto não deixo de sorrir. Chegado de África, encontrou aqui um tipo de mulheres que desconhecia. Eu vejo as africanas como sendo mulheres afáveis e que se vestem de forma colorida, usando os cabelos compridos e enfeitados com ornamentos de flores. Os brincos também serão compridos e de muitas cores. Todas pensam em namorar, casar e ter um lar bem ao jeito tradicional. Nesse dia em que fomos ao Ribatejo, Isildo passou o tempo a cortejar-me mas eu não estava para aí virada. Por várias vezes me perguntou se eu o achava bonito. Na verdade nem era feio, só que eu tinha outras prioridades. Depois virou-se para a professora de ginástica que era do Porto e que estava a estudar em Coimbra. Também ela não lhe ligou. Era outra rapariga do Desporto. Ele não estava habituado a encontrar duas mulheres “um pouco masculinizadas”.

Uns meses depois voltou à carga, desta vez com uma estudante que fazia umas horas no bar da ACAPO. esta é a história que irei recordar dele com um sorriso malicioso na cara. Essa rapariga, tal como eu, usava cabelos bem curtos, vestia roupa desportiva e não usava brincos também. Ao constatar que nós as duas éramos parecidas, começou a questionar-se de que algo de errado se passava com as raparigas portuguesas. A cereja no topo do bolo foi quando ele disse que não era homossexual. Estoirou um coro de gargalhadas entre a pequena assistência. Houve um amigo nosso que quase rebentava as costuras da roupa de tanto rir. Mas o que é que tem a ver uma coisa com a outra? Se calhar a mesma coisa entre se considerar em África uma pessoa que não vê a cem por cento cega? De facto Isildo cá em portugal era amblíope, categoria completamente desconhecia no Continente Negro e que já tem causado alguns contratempos no Desporto Adaptado.

Já havia a desconfiança de que Isildo ainda via mas depois da viagem à Serra da Estrela não me restaram mais dúvidas. Aquela viagem à Serra da Estrela foi bastante emotiva para os moçambicanos que se encontravam a estudar em Coimbra. Isildo parecia mesmo uma criança ao contactar com a neve pela primeira vez. Parecia mesmo uma criança! Eu acompanhei-o durante essa viagem. Tenho imensas fotografias com ele nesse dia. Já perto da hora do regresso, quando já estava prestes a escurecer, íamos pela rua. Eu guiava-o. Para todos os efeitos, ele era completamente cego. A uma distância aí de uns dez metros seguia um grupo de pessoas. Como estava escuro, não estava a reconhecer quem eram. Tinha a impressão de que não eram do nosso grupo mas também pensei que fossem cegos da Covilhã que se tinham juntado a nós para um dia de convívio. Foi ele quem me disse que tínhamos de ir mais para a frente porque aquelas pessoas já não eram do nosso grupo. Foi apanhado.

Toda a gente dizia que o via a andar normalmente na rua sem bengala branca. Um amigo meu que vê um pouco menos do que eu admirava-se de ele passar sem tocar nas portas e que ele próprio por vezes ia contra as portas e as mesas.

Numa das últimas vezes, senão a última em que o vi, estava eu num dos computadores da sala de multimédia da ACAPO. Ele pegou num livro em Braille e começou a ler. Para o testar, fiz uma pasta nova no Ambiente de trabalho do computador que tinha um fundo azul. A pasta era amarela, claro está. Fiquei a saber que ele distinguia as pastas sem saber o que elas tinham escrito. Ainda via bastante. Uns cinco por cento, talvez mais um pouco.

Também me recordo de ele vir para as acções de formação que por vezes se realizam na ACAPO de fato, gravata, pasta à executivo e a tresandar a perfume. Quando soube que ele estava a dar aulas, imaginava-o exactamente assim.

São estas as recordações que irão permanecer para além da morte que o fez partir.

Descansa em Paz, amigo! Viveste pouco tempo mas soubeste desfrutar de todos os prazeres que os poucos anos de vida te proporcionaram.

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