Thursday, June 27, 2024

Nem antes, nem depois

 

Mais um dia chega ao fim. A noite é longa e fria mas sinto-me viva, relaxada, feliz pelo momento presente. A chaleira ferve. Na caneca repousa a saqueta de chá de ervas que impregna a casa de subtis aromas.

A lareira está acesa, a lenha estala  com o crepitar do aconchego das noites de inverno.  Também dela se desprende um agradável aroma a natureza, invocando pinhais e passeios ao ar livre.

A  poida e já desbotada cadeira onde    habitualmente me sento já me estende os braços, conhece os meus hábitos, percebe que é hora de esquecer tudo e somente sentar, ler um bom livro,  refletir ou simplesmente gozar o   privilégio de estar viva.

O aconchegante calor da lareira preenche de vida cada célula do meu corpo. Os pensamentos começam a surgir. Penso sobretudo no momento presente, no que tenho, no que sou, no que estou a sentir neste preciso segundo. Sinto uma paz interior que me invade á medida que mais um dia chega ao fim e a madrugada se  instala, trazendo consigo os sonhos e as reflexões.

Aprecio estar aqui sentada, sem pensar no que fui antes ou no que serei depois. Um  livro faz-me companhia a cada noite. Não quero outra. Ler dá-me os nutrientes necessários para alimentar a minha mente ávida de conhecimento, de experiências, de emoções. Na maioria das vezes leio histórias inventadas por, quem como eu, gosta das letras e faz delas suas confidentes, transportando para o papel tudo o que já viveu, tudo o que gostaria de ter vivido, tudo o que provavelmente não gostaria de ter vivido ou simplesmente pequenos pedaços de uma existência feita de pensamentos soltos que se juntam numa folha em forma de poema.

Quando não estou a ler vou refletindo. Hoje deixo o grosso volume que retirei da estante repousar no meu regaço. Presto atenção ao que me rodeia. Fecho os olhos para tragar outras sensações que não as visuais. Embriaga-me esta quietude. Apenas o silêncio é entrecortado com o estalido aconchegante da lareira que fornece o calor e o bem-estar.

Presto atenção aos sinais que o meu corpo me vai  transmitindo. Sinto cada célula que compõe este ser   complexo que sou eu. Em cada uma delas a vida pulsa com vagar, sem preocupações, apenas centrada no momento atual.

Vou pensando no que os seres humanos transformaram os seus dias. Tanta correria, tantas preocupações, tanto stress…para quê? Os mestres do   Reiki aconselham a meditar no aqui e agora. Só por hoje. Nem antes, nem depois. O passado ficou para trás, amanhã nem sabemos se cá estamos, para quê tanta pressa? Para quê esgotar as nossas energias? Se vivermos um dia de cada vez, se formos passo a passo sem pensar no passo seguinte a vida flui.

Agarramo-nos muito ao que fomos, ao que deixámos de fazer, a como teria sido tudo diferente se determinadas opções tivessem sido contrárias ás que foram tomadas. O desgaste desses pensamentos leva-nos por caminhos sombrios e impedem-nos de prosseguir esta longa caminhada que é a vida.

Pensar no futuro também retira energia do nosso corpo e da nossa mente. Para que serve nos estarmos  a preocupar com o dia de amanhã que pode  não chegar?

Todas as noites me sento aqui e agradeço por mais um dia passado. Que importa se amanhã o sol  não brilhar? Também há certa beleza numa noite fria e escura. Com calma e sem pressa  também se chega ao destino, seja lá o que for que encontremos no final desta viagem.

Espera. Essa  palavra forma-se agora na minha mente.  Saber esperar dizem que é uma virtude. Há quem diga que, quem espera, desespera e quem espera também alcança. Em que ficamos? A diferença entre estas duas abordagens tão antagónicas tem a ver sobretudo com o modo como encaramos a espera. Da minha parte  há sempre uma garantia: esperar sempre com um livro nos braços. Esperar que amanheça, esperar que o tempo quente regresse, esperar por dias coloridos e luminosos…

Enquanto isso, os livros alimentam-me, retiro deles o néctar precioso que me ajuda a nem sequer pensar no tempo. Muitas vezes o tempo real confunde-se com o tempo dos livros. O eventual desespero da espera prolongada dá lugar a uma certa euforia por nunca estar sozinha estando só. Não me sinto pressionada, não sinto que as oportunidades passam e jamais voltam, não penso demasiado no que fui ou no que posso vir a ser. Apenas existe este momento que é saboreado como se de uma rara e prazerosa iguaria se tratasse.

Aprecio a inércia, a liberdade que tenho de pensar mediante o que vou lendo. Este livro fala das alterações que estamos a presenciar no nosso mundo. As redes sociais tornam tudo tão imediato, tão instantâneo… uma frase, uma imagem, uma ideia, um acontecimento viajam mais rápido que o vento. Hoje qualquer um de nós pode ser, de repente, um detonador de consciências. Uma frase, uma imagem, um pensamento e tudo pode mudar de repente. O anonimato e a privacidade hoje são conceitos muito ténues a partir do memento em que há redes sociais e câmaras de bolso incorporadas em smartphones ao alcance de qualquer um.

Cada um de nós pode escrever e publicar o que pensa. Todo um mundo novo se abriu. Para o Bem e para o Mal. A junção de todos os pensamentos pode convergir para ideias comuns mais facilmente partilhadas nesta autêntica aldeia global que é o nosso Planeta.

Penso no quão fácil é hoje cada um estar na sua casa, sentado à sua lareira, preguiçando na cadeira onde habitualmente repousa. Também o aparelho que o liga ao resto do Mundo repousa ao lado em cima da mesa. Uma ideia surge de repente. Um braço é estendido na direção do smartphone que imediatamente ganha vida e fica a postos para registar e difundir tal pensamento que surgiu do nada, por acaso, no conforto de uma sala. As letras materializam-se no ecrã, o pensamento abstrato ganha uma forma concreta, basta premir agora o botão de publicar para que, algures, em terras mais ou menos distantes, possam ler o que estou a pensar numa noite tranquila de inverno. Imediatamente, num curto espaço de tempo, pensamentos semelhantes se juntam ao meu, formando uma voz consonante que vai cada vez mais se fazendo ouvir, ecoando até onde há silêncio. Imediatamente estas pessoas se juntam, discutem, trocam ideias, tentam chegar a um consenso. Assim é difundida uma ideia.

As questões ambientais, de preocupação com as alterações climáticas, de direitos fundamentais dos seres humanos surgem dessa convergência de estarmos juntos, apesar de cada um em sua casa. Não nos conhecemos mas marchamos por uma causa comum. Já não saímos à rua para mostrar as nossas posições, marchamos isolados ao nosso ritmo mas chegamos ao mesmo objetivo. A ritmos e cadências diferentes, convergimos para o mesmo caminho. Este caminho não é percorrido fisicamente, é percorrido com a força das ideias, daí ser hoje mais difícil seguir no encalço de todos os que o percorrem.

A noite já vai longa. Esqueci completamente o matraquear do tempo. O que vou fazer com estes pensamentos ainda não sei. De todas as minhas reflexões, poucas são as que ganham forma num papel ou num ecrã. Muitas perdem-se por aí, logo substituídas por outras com o mesmo fatal destino. Confesso que por vezes a inércia me vence mas sabe bem me deixar levar por estas divagações e pensamentos que por vezes nem dão tempo para os registar, logo sendo substituídos por outras ideias, outras imagens mentais e outros conceitos.

Quando me lembro de transpor algum destes rasgos repentinos de inspiração para o papel ou para o ecrã, todos vão apreciar os meus apontamentos, nem que seja junto a uma aconchegante lareira numa noite fria de inverno como agora me encontro.

Olho pela janela. Outro dia faz-se anunciar. A sala vai arrefecendo. Só a mente se encontra em ebulição com dezenas de pensamentos, reflexões e ideias que se atropelam para chegar ao papel e se transformarem em algo que todos possam ler.

 

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