Campeã,
sei que nunca
chegarás a ler estas palavras mas não deixo de me sentir
estupefacta com a tua decisão de te submeteres à eutanásia mesmo
depois da medalha que conquistaste nos Jogos Paralímpicos. Sei que a
vida para as pessoas portadoras de deficiência não é fácil e que
muitas vezes as pessoas ditas normais ainda colocam mais obstáculos
na nossa vida do que aqueles que existem realmente. Neste momento
estou a sentir isso na pele e ainda ontem chorava porque alguém não
me facilitou a vida, coisa que também facilitaria a vida dessas
pessoas, não só a minha ou a tua. Não deve ser fácil estar
confinada a uma cadeira de rodas, simplesmente te vou contar uma
história que talvez te faça pensar que, apesar dos teus problemas,
há alguém no Mundo que daria tudo para ter pisado o palco onde
lograste conquistar uma medalha e ficaria feliz se pura e
simplesmente participasse.
É a história de
alguém que um dia teve sonhos, apesar de ter nascido com uma
deficiência visual. Só que esses sonhos foram destruídos pela
base, pela tacanhez das pessoas. O meu primeiro grande sonho era o de
fazer rádio. Já lá vamos…
Não vou contar o
que se passou comigo quando entrei para a escola primária. Só isso
daria um livro. Um dia conto essa história a quem se dignar a
ouvi-la ou aos pais que ainda ontem foram fechar uma escola a
cadeados porque os seus filhos estavam misturados com os da segunda
classe na mesma sala. É muito triste mesmo e qualquer problema que
hoje haja em qualquer escola de Portugal, ao lado do que eu vivi
durante dois anos (não foram dois dias nem duas semanas) é uma
autêntica brincadeira. Em 1982 não havia tantos jornais, televisões
ou redes sociais. Vou começar a minha história de mais tarde. A
minha história no Desporto.
Quando ingressei no
Ensino Superior no curso de Comunicação Social, inscrevi-me na
associação de deficientes visuais daqui de Portugal em várias
modalidades desportivas. Acabei por ter mais sucesso no Atletismo,
pois era a modalidade mais representativa aqui pelos deficientes
visuais. Em 1997 começou a minha carreira de que hoje muito me
orgulho.
Treinava a maioria
das vezes sozinha ou com outros companheiros que faziam manutenção.
Ia lendo em livros ou revistas o que tinha que fazer e o que não
tinha. Apesar dos obstáculos, estava feliz. Finalmente tinha
descoberto um sentido para a vida. Comecei a gostar mais de mim e
isso também se refletiu no contacto com os outros. Saí um pouco do
meu mundo onde estava enclausurada e surpreendia-me um pouco com a
facilidade com que contactava com as outras pessoas.
Algum tempo depois,
houve um campeonato da Europa para deficientes visuais em Portugal e
tive oportunidade de me estrear nas lides internacionais. Estava
mesmo a viver um sonho! Não augurava medalhas mas o facto de estar a
participar e a conviver com pessoas de outros países estava a
preencher-me a alma. Repeti a presença em 2001 na Polónia. A minha
mãe e a minha irmã têm o mesmo problema que eu, não somos uma
família de grandes posses, a facilidade de irmos a outras paragens
era muito remota e o Desporto preenchia muito essa lacuna. Sempre me
interessei pelos outros países, ainda hoje me interesso.
Desportivamente, as coisas correram-me bem. Fiz o melhor que podia e
sabia, apesar das limitações que tinha. Em 2001 estava no último
ano do meu curso e estava a fazer o estágio longe da cidade. Pelo
meio ainda tive uma lesão que me afastou por três meses. O momento
de maior felicidade da minha vida foi vivido ali. Não há medalha
nenhuma que pague estar por breves momentos que sejam com alguém que
vim a descobrir amar de verdade. Também era algo que nunca pensei
que pudesse acontecer e que aconteceu precisamente porque estava
feliz com a vida, estava a conseguir aceitar-me como eu realmente
era. O Desporto operou em mim esse milagre. Hoje olho para trás, com
a realidade que vivo atualmente, e penso que tudo não passou de um
sonho. Não foi. Nunca mais o vi. Por vezes penso no que faria se o
voltasse a ver.
Tinha vários
amigos, de várias proveniências, de culturas diferentes, com modos
de agir e de pensar muito distintos. Isso dava lugar a algumas
peripécias que ainda hoje conto a quem as queira ouvir. Tinha uma
grande amiga no Desporto, a Kate. Era irlandesa e fazia tudo e mais
alguma coisa no Desporto, tal como eu. Desde a primeira vez que
participei numa prova internacional, ela esteve presente e era a
protagonista de algumas dessas histórias que são o que eu levo
desta vida. Também nunca mais a vi pessoalmente...mas vi-a há
quatro anos atrás ...a participar em prova de Ciclismo. É por isso
que não acompanho os Jogos Paralímpicos. Estava até a acompanhar
há quatro anos, até a minha amiga aparecer ali no ecrã da
televisão. Naquele tempo não havia redes sociais e muito pouca
gente deficiente visual tinha acesso a computador. Perdi
completamente o rasto às pessoas de quem gostava.
Depois de terminar o
curso, voltei à minha aldeia que fica num local um pouco remoto. Só
ia a Coimbra uma vez por semana. O resto do tempo, treinava sozinha
nos pinhais e na estrada, numa zona que nos meses de inverno tinha
muito fraca visibilidade na altura. Hoje já tem candeeiros laranja
por todo o lado. Treinava completamente sem apoio de ninguém, ao
frio, à chuva, conforme o tempo estivesse. Intensifiquei a pesquisa
por exercícios e devorava tudo o que fosse relacionado com Desporto.
Tinha um website que era o único que havia na altura sobre Desporto
Adaptado em Portugal. Construi-o na sala de informática da escola.
Foi nessa altura que fizeram uma reportagem televisiva comigo e um
senhor que tinha uma instituição numa localidade perto de Coimbra
chamada Miranda do Corvo me convidou a ir para lá.
Em fevereiro de 2004
decidi-me a dar um passo arriscado e a rumar então a Miranda do
Corvo. Os primeiros tempos não foram fáceis mas tudo era suportado
em nome de um sonho...justamente aquele que hoje é a tua realidade,
a participação nuns Jogos Paralímpicos. Eu tinha as baterias
apontadas para 2008. Já não iria a tempo de 2004. As coisas
começaram a correr-me melhor. Estava a fazer duas coisas pelas quais
muito lutei praticamente desde tenra idade- fazer rádio e praticar
Desporto com boas condições.
À medida que me fui
adaptando mais, os resultados nos treinos foram melhorando a olhos
vistos. Estava também finalmente a trabalhar num projeto de um
programa de rádio e colaborava também com o jornal da cidade. A
vida estava-me a correr lindamente mas, não devo ter nascido para
ser feliz. Por algum motivo não o mereço.
Em finais de março
de 2004, fui a uma consulta de oftalmologia, como sempre fui desde
que sou gente. Já sabia que tinha contraído glaucoma- um
desenvolvimento inevitável do problema genético de que eu e alguns
familiares padecemos. Não estava à espera do que saiu dali daquela
consulta. Teria de ser operada aos olhos com alguma brevidade. Isso
aconteceu um mês depois. Até lá, fui continuando com a minha vida.
Vendo que continuava
a sentir-me cada vez melhor nos treinos e a conseguir bons resultados
nas provas, invadia-me um sentimento agridoce. Sabia que ia parar por
algum tempo mas estava feliz ao mesmo tempo com o que estava a
conseguir. Pensava que tudo se resolveria e, depois de recuperar,
retomaria com normalidade.
Foi com o coração
nas mãos que no dia 23 de abril de 2004 entrei na sala de operações.
Havia o risco de cegar. Afastado esse cenário, só pensava em
recuperar e em retomar os treinos. Contava os dias para uma consulta
que iria ter a 6 de julho de 2004. Pelo meio ainda fiz voluntariado
no Europeu de Futebol de 2004 que se realizou em Portugal. Quando
pisei a pista de Atletismo do Estádio Cidade de Coimbra, quando
andámos a marcar os lugares nas bancadas de imprensa, não contive
as lágrimas. Quando voltaria eu a correr ali? Era a minha segunda
casa. Quando estudava, tinha dias de ir para lá às seis da tarde e
sair de lá perto das oito da noite. Olhei para uma das caixas de
saltos. Muitas foram as vezes em que colocava peças de roupa a
marcar a tábua de chamada e a medir as distâncias. Ali vivi
praticamente parte da minha vida.
Finalmente chegou
aquele dia, o tal dia da consulta. Aguardava-o com expectativa. Ate
tinha deixado roupa de treino em cima da cama. Lembro-me que eram até
uns calções vermelhos e uma camisola amarela.. Esse dia está-me
gravado na memória pelos piores motivos. Foi com um brilho nos olhos
e um sorriso nos lábios que perguntei ao médico se já podia voltar
a treinar. Foi então que tudo se desmoronou quando ele me disse que
não podia fazer Desporto de alta competição devido à pressão
ocular que poderia fazer com que a retina se descolasse (só vejo de
um olho, a retina do outro descolou completamente e acabou mesmo de
descolar de vez quando fui operada em abril) Fiquei completamente
fora de mim. Fiquei completamente perdida. Tudo o que eu construí
acabara de ruir. O que fazer dali para a frente? Por acaso voltei
mesmo a correr nessa mesma tarde. Vieram-me buscar para me equipar.
Acho que ainda fiz umas séries na estrada- ali nós treinávamos na
estrada. Ainda estava em Miranda do Corvo.
Sempre que estava
sozinha, não parava de chorar. A tristeza que sentia era difícil de
transcrever para palavras. Havia um local onde podia esquecer tudo-
no estúdio de rádio. Ninguém notava o que se estava a passar
porque só a rádio me dava algum aconchego. É a minha grande paixão
a par do Desporto mas não voltei também a ter a oportunidade de
realizar esse sonho. Desse ainda não desisti mas agora não penso
ser só animadora, gostava de trabalhar também nos bastidores, na
produção de programas, nas pesquisaras, por aí assim.
Passado algum tempo,
decidi vir-me embora de Miranda do Corvo. Aproveitando uma mudança
de instalações, peguei nas minhas coisas e voltei para casa. Não
fugi. Apenas achei que não estava ali a fazer mais nada. A senhora
da rádio ainda pediu que eu ficasse. Custou-me vir embora mas houve
algo que me disse, uma voz interior, que devia ir-me embora. A partir
dali, as coisas só tendiam a piorar. Infelizmente foi isso que
aconteceu.
No ano de 2005, já
quando tinha voltado a casa, fui sujeita a mais duas operações aos
olhos. Foi nessa altura que também vi os meus colegas de Lisboa que
hoje estão aí contigo pela última vez e me despedi deles. Foi em
Lisboa durante um almoço. Meses mais tarde, uma semana depois de ter
sido operada pela terceira vez, a pressão ocular subiu abruptamente
e fui internada de urgência. Foi no dia 24 de maio de 2005. Esse foi
sem sombra de dúvidas o dia mais negro da minha vida. O glaucoma não
mata ninguém mas dá dores horríveis. É com isto que eu por vezes
vivo. Quando me enervo, as dores nos olhos são a primeira coisa que
sinto. Naquele dia pensei em tudo, no quanto não dei valor aos
pequenos momentos da vida. Foi a partir daí que passei a viver como
vivo hoje, sempre um dia a seguir ao outro, sem grandes planos para o
futuro.
Em setembro de 2005,
dada a situação que eu vivia e o risco de cegar, ingressei nos
cursos da associação de cegos. Foi aí que voltei a treinar na
pista de Atletismo do Estádio Cidade de Coimbra. Já não corria
desde Janeiro, altura da primeira de duas operações no ano de 2005.
Apenas podia correr, não podia fazer saltos nem musculação.
Voltei a ser só
velocista, tal como o era quando iniciei a minha carreira. Num
chuvoso e friorento Sábado de finais de novembro de 2005, retomei a
competição numa prova regional. Assim andei até 2007, altura em
que abandonei a competição definitivamente. Em parte isso deveu-se
ao facto de as pessoas responsáveis nem sequer me terem dado
oportunidade de competir nos Campeonatos nacionais de 2006. Fiquei
triste e magoada com as pessoas. Estava-me a esforçar bastante,
estava até a arriscar algo, sabiam por tudo o que eu tinha passado e
trataram-me da forma como me trataram. Merecia outro respeito, outra
consideração, a derradeira oportunidade de correr com os meus
colegas que havia deixado. Em 2007 nem sequer me disseram que havia
campeonatos. Aí abandonei tudo de vez, magoada e com os tendões a
cederem devido à falta de trabalho de ginásio. Já não iria a lado
nenhum em termos desportivos mas queria ao menos ter participado uma
última vez nos campeonatos nacionais, coisa que não fiz em 2004
quando iria conseguir resultados que iriam deixar toda a gente de
boca aberta. Nem me iriam conhecer! Queria uma despedida do Mundo do
Desporto digna, respeitando o que fiz durante quase dez anos. Depois
também voltei para casa em 2008. Já não daria para continuar de
qualquer maneira.
E foi isso que
aconteceu. Desde 2010 que trabalho numa grande empresa portuguesa,
uma das mais sólidas e mais seguras do meu país. Apesar de ter
emprego, um ordenado ao fim do mês e alguma estabilidade, enquanto o
meu problema estiver controlado, muitas vezes choro, especialmente
nessas alturas de Jogos Paralímpicos. Como teria sido lindo se a
vida me tivesse dado a oportunidade de viver um evento desses. Muitas
vezes sonhei (e ainda sonho) com isso. Se penso na morte? Sim, mas em
2005 era a toda a hora e a todo o instante. Agora apenas sinto um
vazio. Voltei a ser o que era antes de o Desporto entrar na minha
vida: uma pessoa permanentemente magoada, injustiçada. Algém que a
toda a hora pensa que os outros conspiram contra si. Alguém que nem
sequer se queixa porque acha que não merece melhor.
Sinceramente, tenho
dificuldade em perceber como é que alguém que acaba de ganhar uma
medalha nuns Jogos Paralimpicos pensa em morrer. Há quem lute uma
vida inteira por aquilo que nunca vai conseguir, não por culpa
própria mas porque os outros colocam entraves. Acontece comigo e com
muitas outras pessoas portadoras de deficiência. A batalha faz-se
todos os dias. Se iremos vencer a guerra? Muito dificilmente mas
todos nós seremos necessários para pelo menos darmos luta a essa
gente que nem por um minuto se coloca no nosso lugar.
Há que continuar.
Desistir não é para os campeões.
Saudações
Desportivas:
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