Saturday, September 17, 2016

Carta a Marieke Vervoort

Campeã,

sei que nunca chegarás a ler estas palavras mas não deixo de me sentir estupefacta com a tua decisão de te submeteres à eutanásia mesmo depois da medalha que conquistaste nos Jogos Paralímpicos. Sei que a vida para as pessoas portadoras de deficiência não é fácil e que muitas vezes as pessoas ditas normais ainda colocam mais obstáculos na nossa vida do que aqueles que existem realmente. Neste momento estou a sentir isso na pele e ainda ontem chorava porque alguém não me facilitou a vida, coisa que também facilitaria a vida dessas pessoas, não só a minha ou a tua. Não deve ser fácil estar confinada a uma cadeira de rodas, simplesmente te vou contar uma história que talvez te faça pensar que, apesar dos teus problemas, há alguém no Mundo que daria tudo para ter pisado o palco onde lograste conquistar uma medalha e ficaria feliz se pura e simplesmente participasse.

É a história de alguém que um dia teve sonhos, apesar de ter nascido com uma deficiência visual. Só que esses sonhos foram destruídos pela base, pela tacanhez das pessoas. O meu primeiro grande sonho era o de fazer rádio. Já lá vamos…

Não vou contar o que se passou comigo quando entrei para a escola primária. Só isso daria um livro. Um dia conto essa história a quem se dignar a ouvi-la ou aos pais que ainda ontem foram fechar uma escola a cadeados porque os seus filhos estavam misturados com os da segunda classe na mesma sala. É muito triste mesmo e qualquer problema que hoje haja em qualquer escola de Portugal, ao lado do que eu vivi durante dois anos (não foram dois dias nem duas semanas) é uma autêntica brincadeira. Em 1982 não havia tantos jornais, televisões ou redes sociais. Vou começar a minha história de mais tarde. A minha história no Desporto.

Quando ingressei no Ensino Superior no curso de Comunicação Social, inscrevi-me na associação de deficientes visuais daqui de Portugal em várias modalidades desportivas. Acabei por ter mais sucesso no Atletismo, pois era a modalidade mais representativa aqui pelos deficientes visuais. Em 1997 começou a minha carreira de que hoje muito me orgulho.

Treinava a maioria das vezes sozinha ou com outros companheiros que faziam manutenção. Ia lendo em livros ou revistas o que tinha que fazer e o que não tinha. Apesar dos obstáculos, estava feliz. Finalmente tinha descoberto um sentido para a vida. Comecei a gostar mais de mim e isso também se refletiu no contacto com os outros. Saí um pouco do meu mundo onde estava enclausurada e surpreendia-me um pouco com a facilidade com que contactava com as outras pessoas.

Algum tempo depois, houve um campeonato da Europa para deficientes visuais em Portugal e tive oportunidade de me estrear nas lides internacionais. Estava mesmo a viver um sonho! Não augurava medalhas mas o facto de estar a participar e a conviver com pessoas de outros países estava a preencher-me a alma. Repeti a presença em 2001 na Polónia. A minha mãe e a minha irmã têm o mesmo problema que eu, não somos uma família de grandes posses, a facilidade de irmos a outras paragens era muito remota e o Desporto preenchia muito essa lacuna. Sempre me interessei pelos outros países, ainda hoje me interesso. Desportivamente, as coisas correram-me bem. Fiz o melhor que podia e sabia, apesar das limitações que tinha. Em 2001 estava no último ano do meu curso e estava a fazer o estágio longe da cidade. Pelo meio ainda tive uma lesão que me afastou por três meses. O momento de maior felicidade da minha vida foi vivido ali. Não há medalha nenhuma que pague estar por breves momentos que sejam com alguém que vim a descobrir amar de verdade. Também era algo que nunca pensei que pudesse acontecer e que aconteceu precisamente porque estava feliz com a vida, estava a conseguir aceitar-me como eu realmente era. O Desporto operou em mim esse milagre. Hoje olho para trás, com a realidade que vivo atualmente, e penso que tudo não passou de um sonho. Não foi. Nunca mais o vi. Por vezes penso no que faria se o voltasse a ver.

Tinha vários amigos, de várias proveniências, de culturas diferentes, com modos de agir e de pensar muito distintos. Isso dava lugar a algumas peripécias que ainda hoje conto a quem as queira ouvir. Tinha uma grande amiga no Desporto, a Kate. Era irlandesa e fazia tudo e mais alguma coisa no Desporto, tal como eu. Desde a primeira vez que participei numa prova internacional, ela esteve presente e era a protagonista de algumas dessas histórias que são o que eu levo desta vida. Também nunca mais a vi pessoalmente...mas vi-a há quatro anos atrás ...a participar em prova de Ciclismo. É por isso que não acompanho os Jogos Paralímpicos. Estava até a acompanhar há quatro anos, até a minha amiga aparecer ali no ecrã da televisão. Naquele tempo não havia redes sociais e muito pouca gente deficiente visual tinha acesso a computador. Perdi completamente o rasto às pessoas de quem gostava.

Depois de terminar o curso, voltei à minha aldeia que fica num local um pouco remoto. Só ia a Coimbra uma vez por semana. O resto do tempo, treinava sozinha nos pinhais e na estrada, numa zona que nos meses de inverno tinha muito fraca visibilidade na altura. Hoje já tem candeeiros laranja por todo o lado. Treinava completamente sem apoio de ninguém, ao frio, à chuva, conforme o tempo estivesse. Intensifiquei a pesquisa por exercícios e devorava tudo o que fosse relacionado com Desporto. Tinha um website que era o único que havia na altura sobre Desporto Adaptado em Portugal. Construi-o na sala de informática da escola. Foi nessa altura que fizeram uma reportagem televisiva comigo e um senhor que tinha uma instituição numa localidade perto de Coimbra chamada Miranda do Corvo me convidou a ir para lá.

Em fevereiro de 2004 decidi-me a dar um passo arriscado e a rumar então a Miranda do Corvo. Os primeiros tempos não foram fáceis mas tudo era suportado em nome de um sonho...justamente aquele que hoje é a tua realidade, a participação nuns Jogos Paralímpicos. Eu tinha as baterias apontadas para 2008. Já não iria a tempo de 2004. As coisas começaram a correr-me melhor. Estava a fazer duas coisas pelas quais muito lutei praticamente desde tenra idade- fazer rádio e praticar Desporto com boas condições.

À medida que me fui adaptando mais, os resultados nos treinos foram melhorando a olhos vistos. Estava também finalmente a trabalhar num projeto de um programa de rádio e colaborava também com o jornal da cidade. A vida estava-me a correr lindamente mas, não devo ter nascido para ser feliz. Por algum motivo não o mereço.

Em finais de março de 2004, fui a uma consulta de oftalmologia, como sempre fui desde que sou gente. Já sabia que tinha contraído glaucoma- um desenvolvimento inevitável do problema genético de que eu e alguns familiares padecemos. Não estava à espera do que saiu dali daquela consulta. Teria de ser operada aos olhos com alguma brevidade. Isso aconteceu um mês depois. Até lá, fui continuando com a minha vida.

Vendo que continuava a sentir-me cada vez melhor nos treinos e a conseguir bons resultados nas provas, invadia-me um sentimento agridoce. Sabia que ia parar por algum tempo mas estava feliz ao mesmo tempo com o que estava a conseguir. Pensava que tudo se resolveria e, depois de recuperar, retomaria com normalidade.

Foi com o coração nas mãos que no dia 23 de abril de 2004 entrei na sala de operações. Havia o risco de cegar. Afastado esse cenário, só pensava em recuperar e em retomar os treinos. Contava os dias para uma consulta que iria ter a 6 de julho de 2004. Pelo meio ainda fiz voluntariado no Europeu de Futebol de 2004 que se realizou em Portugal. Quando pisei a pista de Atletismo do Estádio Cidade de Coimbra, quando andámos a marcar os lugares nas bancadas de imprensa, não contive as lágrimas. Quando voltaria eu a correr ali? Era a minha segunda casa. Quando estudava, tinha dias de ir para lá às seis da tarde e sair de lá perto das oito da noite. Olhei para uma das caixas de saltos. Muitas foram as vezes em que colocava peças de roupa a marcar a tábua de chamada e a medir as distâncias. Ali vivi praticamente parte da minha vida.

Finalmente chegou aquele dia, o tal dia da consulta. Aguardava-o com expectativa. Ate tinha deixado roupa de treino em cima da cama. Lembro-me que eram até uns calções vermelhos e uma camisola amarela.. Esse dia está-me gravado na memória pelos piores motivos. Foi com um brilho nos olhos e um sorriso nos lábios que perguntei ao médico se já podia voltar a treinar. Foi então que tudo se desmoronou quando ele me disse que não podia fazer Desporto de alta competição devido à pressão ocular que poderia fazer com que a retina se descolasse (só vejo de um olho, a retina do outro descolou completamente e acabou mesmo de descolar de vez quando fui operada em abril) Fiquei completamente fora de mim. Fiquei completamente perdida. Tudo o que eu construí acabara de ruir. O que fazer dali para a frente? Por acaso voltei mesmo a correr nessa mesma tarde. Vieram-me buscar para me equipar. Acho que ainda fiz umas séries na estrada- ali nós treinávamos na estrada. Ainda estava em Miranda do Corvo.

Sempre que estava sozinha, não parava de chorar. A tristeza que sentia era difícil de transcrever para palavras. Havia um local onde podia esquecer tudo- no estúdio de rádio. Ninguém notava o que se estava a passar porque só a rádio me dava algum aconchego. É a minha grande paixão a par do Desporto mas não voltei também a ter a oportunidade de realizar esse sonho. Desse ainda não desisti mas agora não penso ser só animadora, gostava de trabalhar também nos bastidores, na produção de programas, nas pesquisaras, por aí assim.

Passado algum tempo, decidi vir-me embora de Miranda do Corvo. Aproveitando uma mudança de instalações, peguei nas minhas coisas e voltei para casa. Não fugi. Apenas achei que não estava ali a fazer mais nada. A senhora da rádio ainda pediu que eu ficasse. Custou-me vir embora mas houve algo que me disse, uma voz interior, que devia ir-me embora. A partir dali, as coisas só tendiam a piorar. Infelizmente foi isso que aconteceu.

No ano de 2005, já quando tinha voltado a casa, fui sujeita a mais duas operações aos olhos. Foi nessa altura que também vi os meus colegas de Lisboa que hoje estão aí contigo pela última vez e me despedi deles. Foi em Lisboa durante um almoço. Meses mais tarde, uma semana depois de ter sido operada pela terceira vez, a pressão ocular subiu abruptamente e fui internada de urgência. Foi no dia 24 de maio de 2005. Esse foi sem sombra de dúvidas o dia mais negro da minha vida. O glaucoma não mata ninguém mas dá dores horríveis. É com isto que eu por vezes vivo. Quando me enervo, as dores nos olhos são a primeira coisa que sinto. Naquele dia pensei em tudo, no quanto não dei valor aos pequenos momentos da vida. Foi a partir daí que passei a viver como vivo hoje, sempre um dia a seguir ao outro, sem grandes planos para o futuro.

Em setembro de 2005, dada a situação que eu vivia e o risco de cegar, ingressei nos cursos da associação de cegos. Foi aí que voltei a treinar na pista de Atletismo do Estádio Cidade de Coimbra. Já não corria desde Janeiro, altura da primeira de duas operações no ano de 2005. Apenas podia correr, não podia fazer saltos nem musculação.

Voltei a ser só velocista, tal como o era quando iniciei a minha carreira. Num chuvoso e friorento Sábado de finais de novembro de 2005, retomei a competição numa prova regional. Assim andei até 2007, altura em que abandonei a competição definitivamente. Em parte isso deveu-se ao facto de as pessoas responsáveis nem sequer me terem dado oportunidade de competir nos Campeonatos nacionais de 2006. Fiquei triste e magoada com as pessoas. Estava-me a esforçar bastante, estava até a arriscar algo, sabiam por tudo o que eu tinha passado e trataram-me da forma como me trataram. Merecia outro respeito, outra consideração, a derradeira oportunidade de correr com os meus colegas que havia deixado. Em 2007 nem sequer me disseram que havia campeonatos. Aí abandonei tudo de vez, magoada e com os tendões a cederem devido à falta de trabalho de ginásio. Já não iria a lado nenhum em termos desportivos mas queria ao menos ter participado uma última vez nos campeonatos nacionais, coisa que não fiz em 2004 quando iria conseguir resultados que iriam deixar toda a gente de boca aberta. Nem me iriam conhecer! Queria uma despedida do Mundo do Desporto digna, respeitando o que fiz durante quase dez anos. Depois também voltei para casa em 2008. Já não daria para continuar de qualquer maneira.

E foi isso que aconteceu. Desde 2010 que trabalho numa grande empresa portuguesa, uma das mais sólidas e mais seguras do meu país. Apesar de ter emprego, um ordenado ao fim do mês e alguma estabilidade, enquanto o meu problema estiver controlado, muitas vezes choro, especialmente nessas alturas de Jogos Paralímpicos. Como teria sido lindo se a vida me tivesse dado a oportunidade de viver um evento desses. Muitas vezes sonhei (e ainda sonho) com isso. Se penso na morte? Sim, mas em 2005 era a toda a hora e a todo o instante. Agora apenas sinto um vazio. Voltei a ser o que era antes de o Desporto entrar na minha vida: uma pessoa permanentemente magoada, injustiçada. Algém que a toda a hora pensa que os outros conspiram contra si. Alguém que nem sequer se queixa porque acha que não merece melhor.

Sinceramente, tenho dificuldade em perceber como é que alguém que acaba de ganhar uma medalha nuns Jogos Paralimpicos pensa em morrer. Há quem lute uma vida inteira por aquilo que nunca vai conseguir, não por culpa própria mas porque os outros colocam entraves. Acontece comigo e com muitas outras pessoas portadoras de deficiência. A batalha faz-se todos os dias. Se iremos vencer a guerra? Muito dificilmente mas todos nós seremos necessários para pelo menos darmos luta a essa gente que nem por um minuto se coloca no nosso lugar.

Há que continuar. Desistir não é para os campeões.

Saudações Desportivas:

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